Os Anos Loucos - Capítulo 4: Apresentações

Os recém-chegados a Paris não sabiam que os preços tinham quadruplicado desde o começo da guerra. Alguns produtos custavam mais de dez vezes o seu valor: os cigarros subiram 100%; o sabão, 500%.


O desemprego era grave, naturalmente, após a desmobilização do maior exército que a França já havia convocado; as pensões dos idosos quase não valiam mais nada. Mas a horda de invasores pouco ligava para o preço do pão, majorado oficialmente de cinquenta para noventa cêntimos. A drástica desvalorização do franco francês era apenas um dos motivos que atraíram à Paris a primeira leva de americanos. No mesmo dia em que os jornais anunciaram o aumento do pão, 1º de janeiro de 1920, o dólar estava valendo 26,76 francos - uma única nota das 'verdinhas' dava para comprar pão para o mês inteiro.

As antigas regiões industrializadas no Nordeste da França foram devastadas e despovoadas - e não só a francesa, mas a maioria das economias européias se arruinaram com a guerra - enquanto os Estados Unidos prosperaram no período 1914-18, sendo a maior potência industrial do mundo já no começo da década de 20.

O aspecto externo de Paris mantinha-se, porém, inalterado: a cidade sorria sedutora para seus visitantes, ainda que, por trás da fachada, prevalecesse uma pobreza de recursos e espírito. Os que tinham dinheiro - ouro, ou moeda resgatável em ouro - eram os novos peregrinos. Após a crise financeira de 1924-26 na França, o dólar dispararia para uma cotação máxima de cinquenta francos. A falta de estabilidade econômica abriu caminho para uma rica invasão da França por expatriados com dólares. Por apenas oitenta dólares um americano comprava uma passagem em classe turística para atravessar o Atlântico; os aventureiros de verdade poderiam chegar até Le Havre através do trabalho, "metendo a mão na massa" nos fétidos porões dos navios boieiros. Uma modesta mesada vinda de casa daria para bancar um americano em Paris pelo que parecia ser para sempre - os ganhos com a moeda tornavam essa primeira experiência de Grand Tour possível.


Em 1919, F. Scott Fitzgerald ganhava com o que escrevia apenas oitocentos dólares; em 1920, sua renda subiu para 18 mil dólares. Ele acabara de se casar com uma beldade sulista, Zelda Sayre (que já o desprezara pela pobre perspectiva dos seus oitocentos dólares por ano), e no dia dos namorados ela ficou grávida. Os recém-casados estavam ansiosos para esbanjar os primeiros lucros do best seller de Fitzgerald, Oeste, lado do paraíso: Paris parecia o próprio paraíso onde gastar a bolada. Os glamourosos Fitzgeralds eram um símbolo da vida despreocupada em alto estilo e embaixadores da era do jazz, que - também porque, em Manhattan, uma menina de barriga não teria status - Scott e Zelda decidiram introduzir o ritmo musical na França.

Nesse mesmo verão, um amigo de Fitzgerald em Princeton, 'Bunny', crítico literário Edmund Wilson, estava em Paris por sua própria razão urgente e, decerto, parisiense. Wilson achava-se em perseguição amorosa dos olhos violeta de Edna St. Vincent Millay. (Quem poderia resistir a uma poetisa que não apenas era bonita como também capaz de responder a uma tabuleta de não pise na grama - Pelouse défendue - nos jardins de Luxemburgo: "Mais nous ne pelousons pas!"?)

Os Fitzgeralds embarcaram no Aquitânia, esnobemente deleitados de verem seus nomes inscritos na lista de passageiros da primeira classe. Maxwell Perkins, o editor de Fitzgerald na Scribner's, dera-lhe cartas de apresentação para autores franceses e ingleses: a essa altura de sua carreira, Fitzgerald, com um pavor adolescente das figuras literárias consagradas no exterior, estava disposto a usar as conexões Perkins-Scribner's como um salvo-conduto do Novo para o Velho Mundo. Em Paris, Scott e Zelda acamparam na porta de Anatole France, mas não se encontraram com o ilustre francês. Travaram conhecimento, porém, com o irlandês James Joyce. Na ocasião, Fitzgerald declarou que acataria para sempre o gênio de Joyce e ameaçou pular de uma janela para demonstrar sua sinceridade. Joyce persuadiu-o a não fazê-lo.

"Este rapaz deve ser doido”.

Scott e Zelda foram ao Folies Bergére, onde a presença de tantos soldados americanos - de volta das trincheiras que ele não conhecera - pode ter empanado o brilho do espetáculo de carne e plumas. Caminharam com torpida indiferença pelas galerias do Louvre e, cada qual com sua ressaca; percorreram as salas do palácio de Versalhes. (Uma visita ao castelo de Napoleão em Malmaison teve significação irônica: nesse subúrbio ficava a clínica onde Deschanel foi submetido a tratamento por distúrbio nervoso, a mesma clinica que os Fitzgeralds iriam procurar no fim da década, quando Zelda começasse a dar sinais de perturbação mental.) Contra uma crença corrente entre os americanos, a de que "na França as coisas eram mais bem-feitas", Fitzgerald concluiu que a Europa só se interessava pela sua antiqualha.

Os franceses demonstram muito amor pelos americanos - imediatamente após uma guerra - mas Scott e Zelda eram daquela outra América que a França não tolera. O gerente do hotel não viu a graça quando Zelda amarrou com um pedaço de corda a cabina do elevador, para tê-lo sem duvida à sua disposição o tempo todo. Scott, pouco dotado para línguas, não fez o menor esforço para chegar a conhecer seus anfitriões franceses. Como tantos turistas americanos, os Fitzgeralds só se sentiam felizes em companhia dos seus patrícios. Os franceses, quando não deploraram, ignoraram o importante casal da era do jazz. O champanha não dava a mesma onda que gim na banheira, Paris era um tédio. Era como se Scott e Zelda tivessem chegado muito cedo à festa errada e apenas se lembrassem, com imenso pesar, da festa animadíssima de que acabavam de vir.

Embora se dando conta de que o "ataque de charme consciente" de Fitzgerald tinha poucas chances de agradar os franceses, Edmund Wilson insistiu com o casal para que ficasse, mas Scott o informou de que Paris, como centro de cultura, estava esgotada. "A cultura vai atrás do dinheiro", declarou ele, e portanto era Nova York que estava destinada a ser a próxima metrópole de tudo o que importasse.

E assim os Fitzgeralds embarcaram de volta para Manhattan, onde Scott era o Príncipe Encantador de todos os jovens tristes e Zelda (uma vez nascido seu primogênito) poderia ser para sempre a beldade do baile. Quando a festa real pegasse fogo eles apareceriam de novo. Paris em meados da década de 20 - superlotada, extravagante, frenética - era exatamente a festa que os dois andavam procurando tanto.

Edmund Wilson foi quem abandonou Paris para sempre. Edna St. Vincent Millay tornou explícita sua preferência por um jornalista inglês bem-apanhado. Wilson consolou-se ainda algum tempo com uma das mulherezinhas de Montmartre: chegou até a convencer Loulou de que as prostitutas deviam se organizar. (Nas laterais metálicas dos pissoirs fedorentos estava pintado um slogan inspirado pela recente revolução russa: 'A união dos trabalhadores promoverá a paz no mundo.') Loulou achou graça da ingenuidade da Idéia. Como teve curiosidade em saber se Wilson era aparentado ao presidente Wilson, que ela considerava très chic. Uma prostituta pode ser uma graça, uma gostosura e um ótimo namoro de bar, mas a companhia de Loulou não substituiu a altura o romance com a srta. Millay. Uma rejeição por parte da adorável poeta que estava sempre a mil era, de fato, para ser desdenhada pelas musas, para receber uma ducha fria da cidade da arte.

“Não é fantástico", escreveu James Joyce, "como eu entro numa cidade descalço e acabo num apartamento de luxo?"


O primeiro apartamento a abrigar a família Joyce era uma 'caixa de fósforos', mas livre do aluguel, emprestado por madame Savitski, tradutora de James Joyce em Paris, na rue de l'Assomption - nome que o escritor tão cônscio das palavras pode ter julgado adequado. Por insistência de Ezra Pound, Joyce foi a Paris no começo de 1920 para uma visita de duas semanas: ficou vinte anos. Depois das tentativas de "silêncio, exílio e esperteza" por Trieste e Zurique, Paris parecia o próximo e lógico ponto de parada. Joyce recebeu em Zurique a informação de Ezra Pound - que a recebera de Jean Cocteau e Francis Picabia - de que Paris, eternamente suscetível ao milagre do rejuvenescimento, estava entrando numa nova idade de ouro. Em Zurique, Joyce se vira sem vintém e convívio: um processo quixotesco movido contra um empregado da embaixada britânica reduzira ainda mais seus recursos e a acolhida que lhe davam. Após o suplício de passar a guerra vivendo só de aulas de inglês e ganhos de poeta, Paris era de fato, para Joyce, um retorno ao Éden.

Ezra Pound já havia abandonado a cena londrina, onde ele e Wyndham Lewis se encontravam no vértice do movimento vorticista. Pound diagnosticou Londres como moribunda, temendo "acordar uma manhã de pés juntos", depois de ter fugido dos Estados Unidos por essa mesma razão.

Pound apresentou Joyce a seu próprio mecenas, o advogado americano John Quinn, que se interessou pelo romance Ulysses, já quase terminado, de Joyce e prontificou-se a contribuir com mil e seiscentos dólares para sua eventual publicação. O incansável Pound estava reunindo em Paris um círculo de joycianos - admiradores e patrocinadores em potencial. Sua frase predileta, depois de cada conversa sobre o dilema do irlandês, era:

"Você precisa ajudar Joyce."

Ezra Pound era capaz de, sem demonstrar egoísmo, envidar todos os esforços possíveis para ajudar outro artista, escritor ou músico em que acreditasse.

Os dois escritores, James Joyce e Ezra Pound, eram notavelmente diferentes por sua aparência e modos. Joyce, de óculos sem aro e cabelo cortado baixo, vestia-se de forma tão conservadora (mesmo em roupas de segunda mão) quanta seus meios permitiam. Pound, a seu lado, projetava uma imagem quase satânica: com um jeito afetado de poeta, o colarinho folgado e uma negligente cravate, às vezes também usava uma capa, com um sinistro chapéu de aba larga espanhol. Do ponto de vista da sociabilidade, James Joyce era o mais retraído dos homens, com um ritual de elaborada cortesia para manter as pessoas à distância. Ficava tenso e sem jeito ao conhecer gente nova, enquanto Pound, no máximo de sua volubilidade, opinava e comandava, conhecia todo mundo e se reunia com todos, atento a cada efervescência intelectual.

Apesar de certa resistência, Joyce concordou em ser lançado por Pound aos caçadores de celebridades. Em sua pobreza, ele naturalmente gravitava em direção a solvência. Através de Pound, foi convidado para o salão de Natalie Barney, onde conheceu madame Savitski, que não só concordou em traduzir para o francês Retrato do artista quando jovem, como também generosamente ofereceu ao necessitado autor seu apartamento na rue de l' Assomption.

Pound sugeriu a Jenny Serruys, a agente literária, que ela seria capaz de ajudar Joyce. Este habituou-se a aparecer no escritório dela para comunicar que precisava de uma cama para o apartamento emprestado, ou para perguntar onde conseguiria uma mesa onde escrever. A srta. Serruys foi suficientemente prestativa para cuidar das necessidades diárias do escritor, emprestar-lhe dinheiro e até apresentar seu noivo a legião de amigos que ajudavam Joyce: feliz da vida, ele aceitou do rapaz um sobretudo militar já sem uso - o melhor, Joyce declarou enfaticamente, que até então possuíra.

Três dias após sua chegada a Paris, Joyce foi apresentado a proprietária da Shakespeare and Company, Sylvia Beach.

"Este é o grande James Joyce?"
Perguntou Beach.

"James Joyce"
Respondeu Joyce, mudando de mão sua bengala de freixo para cumprimentar a diminuta figura.

Sylvia Beach, com sua fina sensibilidade para o gênio literário e sua paciência sobre-humana com o temperamento literário, seria uma influencia na carreira de Joyce ainda maior que Ezra Pound. Sem demora ele lhe perguntou se ela não lhe arranjaria alguns alunos de inglês; Joyce conseguira sobreviver ensinando inglês em Trieste, e estava pronto a fazer o mesmo em Paris.

Nem todos os novos conhecidos de Joyce renderam-se incondicionalmente a ele: muitos foram até afastados por suas frias maneiras ou sua opinião obviamente superior de si mesmo. Quando Yashushi Tanaka, a mulher americana de um pintor japonês, expressou admiração por Yeats, Joyce opinou maldosamente que Yeats só conquistara projeção por ter sido amante de lady Gregory, e que ela pagara por seu caminho para a fama. A um autor francês, Edmund Jaloux, que havia falado de Flaubert, Joyce fez uma denúncia do estilo de Flaubert, com uma preleção sobre os erros que ele cometeu em francês. Durante uma breve ausência de Pound de Paris, Joyce escreveu-lhe:

"Nunca mais vi sequer ouvi falar dos muitos felizardos mortais que me conheceram aqui. Suspeito que o prazer que minha animadora companhia lhes dava irá durar pelo resto de suas existências. Exceto Vanderpyl”.

Fritz Vanderpyl era o crítico de arte do Le Petit Parisien; tão boa gente, que aceitou a opinião de Joyce de que a arte, excetuada a pintura de retratos, não tinha o menor interesse. Vanderpyl julgava que Joyce, com seu terno escuro decente, seu chapéu de feltro, tinha um ar bastante profissional, excetuado o espantoso e imundo par de tênis que costumava usar nesse primeiro ano em Paris. (O que ele disse sobre entrar numa cidade descalço estava perto da verdade.) Sempre necessitado, Joyce podia deixar cair num instante sua fachada de formalidade para expressar uma solicitação bem direta. Vanderpyl e Joyce mal tinham trocado seu primeiro aperto de mãos quando Joyce pediu a ele:

"Você pode me emprestar cem francos?"

Vanderpyl conseguiu a quantia com um amigo e passou as notas para Joyce, que quase teve de esfregá-las nos olhos, seus olhos tão deficientes, para conferir o valor.

Ezra Pound não poderia resistir à oportunidade de provocar um encontro dos dois grandes homens das letras modernas, T. S. Eliot e James Joyce. Numa breve estada em Londres, Pound soube que Eliot visitaria o continente, e pediu-lhe que entregasse um embrulho a Joyce ao passar por Paris. Os dois homens tiveram muito pouco o que dizer um ao outro, talvez porque Joyce tenha se mostrado - como invariavelmente fazia em tais circunstancias - excessivamente cerimonioso. Wyndham Lewis acompanhou Eliot durante toda a visita, na qual Joyce (num ímpeto de mudança, com dinheiro emprestado) bancou o anfitrião generoso. Depois de pagar todas as rodadas de drinques, convidou Eliot e Lewis para uma cara refeição em seu restaurante predileto, Les Trianons. Era impossível, para qualquer dos convidados, pagar sequer um café. Eliot, em particular, queixou-se com Lewis da insistente prodigalidade e dos excessos de polidez de Joyce. Finalmente o embrulho de Ezra Pound foi aberto: viu-se que ele continha roupas usadas e um surrado par de sapatos marrons - estes, sem dúvida, destinados a substituir os lamentáveis tênis de Joyce.

Desde o apartamento emprestado por madame Savitski, Joyce já se mudara duas vezes com a família de outros quatro - mas atenciosamente devolveu as coisas que pegara com Jenny Serruys ao descobrir que uma das moradias já estava toda mobiliada. No fim do ano, Joyce encontrou o apartamento dos seus sonhos, no boulevard Raspail, 5. O boulevard Raspail é uma longa e sombria avenida residencial que vai do Quartier Latin ao coração de Montparnasse: suas fachadas respeitáveis mas indiferentes em série adequavam-se provavelmente a idéia de santuário de Joyce - ou talvez lhe parecesse agradável morar num bulevar que na junção com a place Vavin homenageava Balzac. O aluguel do apartamento era muito mais do que o escritor poderia esperar ter, mas novamente seus amigos de Paris decidiram que "deveriam ajudar Joyce" e concordaram em assumir o custo de instalação da família. No tocante aos móveis, Joyce era indiferente - muito embora tenha pedido uma mesa de bordas retas para escrever, enquanto Nora Barnacle (que não se tomaria a esposa legal de Joyce senão no fim da década de 20) convertia cada um dos seus ambientes temporários numa réplica passável de uma moradia em Dublin. Foi no boulevard Raspail, e logo depois num apartamento emprestado por Valery Larbaud na rue Cardinal Lemoine, 71, que Joyce completou sua obra-prima, Ulysses, terminando com a afirmativa mais ressonante da história literária, o clássico “yes” de Molly Bloom.

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