Os Anos Loucos - Capítulo 5: Os nós no rabo de Picasso

"Picabia é o homem que deu nós no rabo de Picasso."
Ezra Pound


“Sim", lamentou-se Gertrude Stein, "a velha turma sumiu." Nisso que ela o dizia, porém, um ativo contingente da velha turma, a turma dela, já estava se movendo de novo para suas posições de antes da guerra. Paris, como uma tela de Vallotton, voltava progressivamente a vida. (Quando Vallotton fez seu retrato, Gertrude Stein observou como era obsessivo o método como ele pintava da esquerda para a direita, começando no alto da tela e descendo então para a seção seguinte, até que toda a superfície estivesse coberta de tinta e o retrato completo.) Lentamente, arrondissement por arrondissement - e particularmente em Montparnasse, que tomara o lugar de Montmartre como o último posto avançado da vanguarda -, o retrato começou a definir-se e a ganhar cor.

Os alemães tinham fracassado duas vezes em avançar pelo Marne para uma invasão de Paris, mas agora estava ocorrendo uma invasão em tempo de paz. Grandes colônias de desenraizados - emigrantes russos, aos montes - juntavam-se aos soldados de regresso apinhados na capital. Da América, "os intelectuais mais jovens e independentes foram subindo pela mais longa prancha de embarque do mundo", como Malcolm Cowley visualizou:

"a grande migração para os novos campos da mente".

No fim da guerra, havia sido demolido o posto de artilharia no telhado do Hôtel de Ville e erguido um cabaré inspirado em Cocteau, Le Boeuf sur le Toit (O Boi no Telhado). Quiosques eram cobertos de anúncios para a nova comédia Phi-Phi ou de cartazes de Mistinguett (cantando Mon homme), feitos por Paul Colin. O exercito francês, a não ser por uma força simbólica em serviço de ocupação, estava desmobilizado. Os sobreviventes de Ypres e Verdun casavam-se com as namoradas da guerra, fazendo filas nas prefeituras, e aglomeravam-se em volta dos anúncios da Havas a procura de emprego. Os estragos dos zepelins e as cicatrizes do Grande Bertha ainda estavam visíveis; avisos no metro solicitavam aos passageiros que sempre cedessem seus lugares aos mutiles de la guerre. Os táxis e furgões de alfaiate que haviam transportado tropas para a batalha do Marne já estavam de volta aos bulevares, num familiar emaranhado de trânsito e cacofonia de buzinas.

Da velha turma que Gertrude Stein conhecia melhor, Matisse abandonara Paris pela Riviera, mas Braque voltara das trincheiras, onde sofrera um ferimento na cabeça que exigiu trepanação. Usando um turbante de atadura, ele experimentava aplicar areia e gesso nas telas, trabalhando em seu antigo estúdio da rue Caulaincourt, ao lado do cemitério de Montmartre. Poucos cubistas, no entanto, regressaram a Montmartre: os estúdios tinham subido muito de preço com a fervilhante vida noturna do bairro, antes da guerra ainda um arrabalde rural - com seus velhos moinhos de vento, terrains vagues inclinados, vinhedos e hortas em lotes ajardinados substituídos por prédios de moradia. Montparnasse era mais feio, e faltava-lhe o folclore rústico de la Butte, mas os espaços para estúdio eram mais fáceis de achar.

A lembrança do marchand polonês Zborowski, que tinha descoberto e alimentado Modigliani, ainda perseguia as cites des artistes de La Ruche e La Falguiere, como se outro Modi pudesse aparecer entre os pobres. Mas D. H. Kahnweiler, por causa de sua origem alemã, fora obrigado a se manter fora da guerra na Suíça. Kahnweiler agora estava de volta, e com otimismo inalterado tentou recuperar sua coleção de pinturas confiscada e refazer seu círculo de cubistas. Só Juan Gris, doente e desencorajado, pareceu necessitar ou querer se colocar novamente sob a proteção de Kahnweiler. Picasso tivera já a considerável dose de sucesso que lhe permitiu mudar-se para o esplendor burguês da rue La Boétie, 23, bem ao lado da galeria de Paul Rosenberg no número 21. Os Rosenbergs, Paul e Léonce, haviam substituído o devotado Kahnweiler como marchands de Picasso. A rue La Boétie era a nova rua da arte moderna, com Paul Guillaume no numero 108 e La Licorne, galeria mantida pelo dentista e connaisseur dr. Girardin, no 110, a porta seguinte.

Apesar das mortes e deserções, das mudanças de circunstâncias e atitudes, Paris estava novamente agitada. O Bateau Lavoir - batizado com esse nome pelo poeta Max Jacob por causa de sua desconjuntada estrutura de madeira que lembrava os barcos-lavanderia ancorados ao longo do Sena onde os cubistas tinham vivido e trabalhado em pitoresca miséria (O chá de Picasso congelou durante a noite no bule, mas mesmo assim foi requentado para o petit déjeuner na manhã de inverno seguinte), era a essa altura um barco abandonado. Um dos primeiros a deixar o Bateau Lavoir foi o próprio Max Jacob. Convertendo-se, durante a guerra, do judaísmo ao catolicismo, ele adotara o nome de batismo de Cyprien e agora vivia num constante vaivém entre Paris e a vida contemplativa num mosteiro na aldeia de Saint-Benoît-sur-Loire. Picasso esquivava-se de Max Jacob (Cyprien) e André Derain, que apenas o lembravam dos dias de chá gelado no Bateau Lavoir cheio de goteiras. Nessa fase de novas ligações e convicções transformadas, os pintores da Escola de Paris de antes da guerra tinham se espalhado por outros arrondissements, principalmente Montparnasse, de acordo com seus níveis de sucesso. Georges Braque e o poeta André Breton permaneceram leais a Montmartre. A guerra apenas interrompera o interesse de Braque pelos conceitos cubistas que ele havia descoberto ao lado de Picasso; Breton, por sua vez, acalentava os primeiros sonhos do surrealismo. Numa parede do seu quarto na rue Fontaine, o poeta pendurara este aviso:

"Ne vas jamais a Montpamasse!"

O mundo parisiense da arte já não podia aguentar um vácuo de idéias no pós-guerra: mesmo uma declaração de antiarte ou uma temporada de anarquia cômica serviriam, até que um movimento substancial se constituísse. Por algum tempo, Marcel Duchamp chocara as sensibilidades burguesas com uma arte reversa de ready-mades, ou objetos encontrados prontos, expondo uma pá, uma tampa de privada, uma prateleira de adega como peças de galeria. Esse espírito preparou o terreno para o primeiro dernier cri da década. Dadá nasceu em Zurique durante a guerra (8 de fevereiro de 1916), quando Tristan Tzara apresentou o primeiro manifesto dadaísta no Café Terrasse, acompanhado por Hans Arp com um brioche pendurado na narina esquerda.

O advento das negociações de paz, na Paris de 1920, trouxe a capital dois representantes não convidados - Tristan Tzara e Francis Picabia -, mas decididos e declarar uma nova guerra no mundo da arte. Revolução, e não reconciliação, era o principal item em sua agenda.

Logo no início da campanha, Picabia acompanhou seu amigo Tzara a rue de Fleurus, 27, para anunciar a Gertrude Stein que dadá tinha chegado a Paris. A srta. Stein gostava de Picabia, mas a notícia não a fez achar graça nem lhe despertou interesse. A seu modo original e inventivo, a própria Gertrude Stein poderia ser vista como uma dadaísta inconsciente, mas ela não se inc1inaria a participar de um movimento que não tivesse descoberto por si mesma. (Seu trabalho já fora ridicularizado demais para que se animasse a oferecer seu nome a um grupo dedicado ao ridículo.) Os Steins, Gertrude e seu irmão Leo tinham comprado e louvado obras produzidas sob os vários rótulos de impressionismo, pós-impressionismo, fauvismo, futurismo (um movimento italiano que causou mais agitação em Paris do que em Roma) e sobretudo cubismo - mas dadá não iria receber seu aval. O que aliás não importava;

"Os verdadeiros dadaístas", declarou Tzara,
"são contra dadá."

A primeira manifestação publica de dadá ocorreu no Palais des Fêtes em 23 de Janeiro de 1920. Uma audiência atordoada manteve-se suficientemente passiva, mas sentada com visível desconforto, durante uma discussão literária preliminar. Contudo, quando Tristan Tzara leu como poema um tópico de jornal escolhido ao acaso, acompanhado por chocalhos, cincerros e castanholas, a primeira grande batalha foi travada; as vaias, assobios e insultuosos ataques eram a reação que os dadaístas queriam.

No Salon des Indépendants, logo no mês seguinte, os dadaístas espalharam o boato de que Charlie Chaplin (Charlot) era o mais recente convertido a dadá e estaria presente. Claro que essa notícia atraiu um publico enorme - e Chaplin, claro, não apareceu. Enquanto os dadaístas liam em voz alta seus poemas e manifestos, a multidão enfurecida ia atirando legumes (e também uma costeleta de vitela, num autêntico exemplo de dadá) contra a tribuna. As luzes foram apagadas como aviso para evacuar o auditório. Ao ser apresentada na Salle Gaveau, em maio, a Symphonie Vaseline de Tzara, um contingente de gendarmes patrulhava a platéia para controlar a balbúrdia que já se tornara tradicional.

O cubismo havia sido igualmente revolucionário antes da guerra, mas em 1920 o movimento já mergulhara além dos seus anos de ruptura. Embora Braque prosseguisse com experiências a maneira cubista e Léger tivesse adaptado técnicas cubistas a uma interpretação da era industrial, só Juan Gris continuaria a pintar telas cubistas até sua morte em 1927. O grupo tão coeso de antes da guerra agora estava rachado, o cubismo já não era vanguarda o suficiente para a nova época. Amédée Ozenfant declarou a tendência decadente (de qualquer modo, as pinturas estavam sendo muito bem vendidas para o conforto modernista) e necessitada de depuração. Também procedente da Suíça, mas sem conexão com o grupo dadaísta, Charles Jeanneret (Le Corbusier) juntou-se a Ozenfant na teoria do autentico cubismo, tal como expressa num jornal fundado em 1920, L'Esprit Nouveau. A despeito da tentativa de renovação espiritual, o cubismo, porém, perdia impulso. "O bloco cubista está se esfacelando", escreveu Blaise Cendrars. "Há uma nova beleza. "

Mesmo tendo sido um dos seus criadores, Picasso já não incluía o cubismo entre os seus interesses. Ele foi o único que se recusou a expor quando o Salon des Indépendants, em 1920, realizou uma retrospectiva dos cubistas de antes da guerra. Picasso tinha discutido e depois brigado com Derain e Braque em sua denúncia do cubismo. "Levei Braque e Derain a estação", disse ele desses seus amigos que foram para a guerra, "e nunca mais os encontrei."

Em Roma, Picasso apaixonara-se por Olga Khoklova, uma bailarina de cabelo castanho-avermelhado dos Ballets Russes. Ela era filha de um oficial do exército czarista e parecia ser da classe alta, o que a tornava ainda mais desejável aos olhos de Picasso. Mas Olga não foi uma conquista fácil; um integrante da trupe de Diaghilev ouviu Picasso a porta do seu quarto, pedindo para entrar, e a resposta dela: "Não, não, senhor Picasso, não vou deixá-lo entrar." Nenhuma intriga em sua companhia escapava a Sergei Diaghilev, e ele advertiu o pintor:

"Com uma moça russa, só casando."

Os dois se casaram na igreja ortodoxa russa da rue Daru e a lua-de-mel realizou-se no Hôtel Lutétia, cuja fachada bolo-de-noiva domina o boulevard Raspail no cruzamento Sèvres-Babylone. O casamento com Olga causou uma mudança completa no estilo de vida e na visão geral de Picasso. Olga criou um lar com a respeitabilidade da alta classe media no coração da burguesia da Rive Droite. Uma vez que o nome Picasso podia abrir portas para os círculos mais ricos e mais bem situados da sociedade parisiense, Olga quis deixar para trás sua carreira ainda precária na dança e ingressar nas fileiras do Tout-Paris. Os Picassos recebiam e eram recebidos. O ponto mais alto de Olga na ascensão social foi um convite para a residência en ville do conde Etienne de Beaumont, na rue Masseran.

O pintor que havia usado as calças de veludo manchadas de Montmartre, simples roupa de pescador, ou que trabalhava de macacão, comprou então seu primeiro traje a rigor. Usava com ele uma faixa espanhola vermelha ou preta com franjas (um complemento que costumava vestir por baixo do macacão para proteger os rins do frio úmido do Bateau Lavoir). O caos boêmio que Picasso trouxera de la Butte restringia-se agora ao ateliê do pintor, a um lance de escada sobre o requintado apartamento da rue La Boétie.

Com Olga como modelo de uma série de serenas figuras greco-romanas de proporções heróicas - airosamente dançando em praias do Mediterrâneo, ou sentadas solidamente como estátuas -, Picasso ingressou em sua fase neoclássica. Olga ficou grávida; a vida, em ordem, já era quase previsível. Estudando contemplativamente a arte antiga, Picasso buscou um caminho para sair do cubismo e ir além.

Nesse tempo fluídico, o futuro era vago. O que viria a seguir? A questão também intrigava o empresário Sergei Diaghilev, que só optava em suas produções de balé pelas mais avançadas idéias de vanguarda. No limiar de um novo começo - a companhia dos Ballets Russes fora dispersada pelos acasos da guerra e sentia a desesperada necessidade de uma revivescência -, Diaghilev teve a feliz idéia de juntar Picasso e o compositor Igor Stravinski num projeto de balé sobre um tema de Pergolesi. Stravinski e Picasso eram parecidos em muitas coisas: ambos, de pequena estatura, tinham expressões intensas e animadas a que seus ardentes olhos de bucaneiros davam ainda mais fulgor.


"Quando Picasso olhava uma gravura ou um desenho", disse Leo Stein, "eu me espantava de que sobrasse alguma coisa no papel, de tal modo sua visão era absorvente."


Os dois artistas envaideciam-se além do normal de terem mãos e pés pequenos e chegavam as raias da hipocondria, tal sua preocupação com a saúde. Partilhavam com Diaghilev um medo supersticioso da morte. Em 1920, esses três modernos temperamentais puseram-se a trabalhar no balé Pulcinella.

A primeira série de desenhos concebida por Picasso - no estilo da commedia dell'arte (o Arlequim sempre fascinara o pintor), mas com a época alterada para o século XIX de Offenbach - foi de todo inadequada a concepção do projeto por Diaghilev. Numa discussão sobre o uso de costeletas ao invés de máscaras, Diaghilev rasgou sem mais nem menos os esboços para pisotear com vontade os pedacinhos no chão. Normalmente um ataque desses provocaria um rompimento irreparável entre os dois homens. O orgulho espanhol de Picasso e a obstinação de Diaghilev não podiam tolerar oposição, mas Picasso - talvez já condicionado a turbulência eslava pelos acessos de fúria de Olga - conseguiu dominar sua ira. Com a mesma brusquidão com que explodira, Diaghilev tornou-se, na medida em que era capaz, pura persuasão e charme. Num milagre de reconciliação, Picasso desenhou novos figurinos e mudou o cenário. Pulcinella foi o sucesso de que Diaghilev precisava para trazer os Ballets Russes à década de 20, uma reafirmação do passado clássico filtrado pelas percepções de um pintor e um compositor de gênio.

Na época do armistício, Gertrude Stein observou que a morte de Apollinaire transformara Paris. Guillaume Apollinaire fora o principal expoente da vanguarda na Belle Époque: poeta, crítico, empresário do cubismo. Ele não morreu da lesão na guerra - uma bala na cabeça que, como a de Braque, exigiu trepanação -, mas da gripe espanhola, o segundo grande flagelo do século recém-nascido (a gripe causou tantas mortes quanto as atribuídas a Primeira Guerra Mundial, um número estimado em dez milhões). A história que Gertrude Stein enfeitou e passou adiante era esta: que Apollinaire, já à beira da morte, ouviu na cama gritos vindos da rua, "Abaixo Guillaume!", que em seu delírio ele julgou que se referissem a ele, e não ao kaiser Wilhelm. Mas Guillaume Apollinaire morreu três dias antes do armistício, não poderia ter ouvido os gritos da vitória em seu leito de morte. Uma história que era uma história sempre agradava a Gertrude Stein.

Embora lamentasse o falecimento de Apollinaire e o final da era que ele representara, a srta. Stein não era dada a apatia prolongada nem a queixas eternas sobre uma época extinta. (Em certo sentido, o desaparecimento de Apollinaire como embaixador da arte deixava esse posto vago para a própria Gertrude.)

Para a srta. Stein, a melhor maneira de marcar o fim da guerra e o começo da década de 20 foi trocar a pesada ambulância Ford que ela havia dirigido durante todo o conflito (seu "coche funerário de segunda classe") por um ousado dois lugares que ela chamou de Godiva porque o novo automóvel chegou de Detroit em seu estado natural, sem o garbo dos acessórios. (Fumante inveterada, ela instalou seu próprio cinzeiro.) Estava novamente escrevendo, não raro no majestoso assento de motorista do Godiva, enquanto esperava um conserto numa oficina, ou estacionada junto a uma calçada em Paris.

Numa das oficinas em que Godiva foi atendido, a srta. Stein ouviu um mecânico francês - um homem mais velho, vesgo, consciencioso e afável - referir-se a sua própria e desesperançada aprendizagem como a de une génération perdue. Os homens, explicou ele, civilizam-se entre os dezoito e os trinta anos, mas a geração da guerra não conhecera esse período civilizatório. Mais tarde, a srta. Stein empregou a expressão para os homens de vinte anos, como Ernest Hemingway, cujo caráter sofreu mudanças e cuja visão do mundo toldou-se quando a ordem natural de suas vidas foi interrompida pela guerra. O escritor Matthew Josephson estava presente quando a srta. Stein rotulou sua geração de 'perdida'; mas ele reteve a frase francesa como une génération fichue, que significa 'arruinada' - e assim o famoso rótulo pode ter sido largamente romantizado na tradução.

A propagação dos boatos e das novidades, uma rede de apresentações e os encontros casuais começaram pouco a pouco a ligar uns aos outros os postos avançados da nova era.


Sylvia Beach deu inicio a Shakespeare and Company, sua livraria que alugava livros em inglês e servia aos clientes como ponto de referência para o recebimento de cartas - uma espécie de American Express da Rive Gauche - primeiro na rue Dupuytren e depois na rue de l'Odeon, 8 (mais tarde 12), do outro lado da rue de La Maison des Amis des Livres, de Adrienne Monnier. Sylvia Beach e Adrienne Monnier conheceram-se quando o vento levou o chapelão de Sylvia e Adrienne, com uma saia comprida e grossa de camponesa, saiu atrás para apanhá-lo na rue de l'Odeon. Les Amis des Livres prestava os mesmos serviços literários aos intelectuais franceses que a Shakespeare and Company realizava para a comunidade de língua inglesa. Como a srta. Monnier e a srta. Beach ficaram amigas para sempre e nunca foram rivais - fato raro e admirável no clima competitivo no Quartier - os círculos franceses e anglo-americanos que frequentavam a rue de l'Odeon tornaram-se não poucas vezes concêntricos.

Cada qual a seu modo, as duas lojas eram ao mesmo tempo librairies e galeria de arte. Na Shakespeare and Company, Gertrude Stein entrou em contato com numerosos escritores novos de passagem ou recém-instalados em Paris desde a guerra. Lá ela achava o que ler em inglês e pode constatar com prazer que seu próprio Tender buttons, impresso em edição não comercial, estava entre os livros de aluguel. Para Gertrude, percorrer livrarias e vernissages era não só ocasiões sociais, mas também de estímulo intelectual - os novos escritores e pintores que ela encontrava eram convidados para seu estúdio-salão na rue de Fleurus, 27. Numa galeria da Rive Gauche, Picasso, com quem Gertrude Stein havia brigado, aproximou-se dela e lhe disse: "Que diabo, vamos ser amigos!" - e com isso apertaram-se as mãos e ela o convidou a seu estúdio. O estúdio da rue de Fleurus tornou-se ponto de encontro no coração de Montparnasse para todos que já fossem alguém, (ou logo se tomariam alguém), bem como para os ociosamente curiosos, ou os curiosamente ociosos, todas as caras novas ou excêntricos de passagem pela cidade que respondessem de bom grado a pergunta que Alice Toklas, a companheira da srta. Stein, sempre fazia a porta:

"De la part de qui venez-vous?"

As visitas apareciam às vezes sem que ninguém lhes desse instrução explícita, ou poderiam ter sido convidadas pela própria e esquecida srta. Stein. Ode la part, contudo, não importava tanto quanta a perspicácia de Gertrude Stein para avaliar as pessoas, sua rápida, instintiva e sumária consideração do caráter ou seu precoce discernimento de originalidade no menos prometedor dos circunstantes. Seus preconceitos, embora inúmeros, acabavam por atuar em favor da própria visita.

Gertrude Stein e Sherwood Anderson - de quem ela gostou de pronto por seus olhos grandes italianados - conheceram-se na Shakespeare and Company. Também através de Sylvia Beach, a srta. Stein conheceu Ezra Pound, sobre quem ficou em dúvida. Pound já travara relações com Yeats na Irlanda, Eliot na Inglaterra e Joyce em Paris. Como James Joyce também frequentava a Shakespeare and Company, a srta. Stein quase chegou a conhecê-lo lá, mas, segundo ela mesma, ficou no quase. Pound era um amigo generoso de escritores, pintores e músicos, como também uma influencia importante no movimento artístico. (Foi essa influencia que deixou a srta. Stein em dúvida quanto a Pound.) Atuando como editor ou associado as 'pequenas' revistas, ele conseguia ajudar seus contemporâneos de talento a publicarem suas obras, e com toda a sinceridade quis ajudar a srta. Stein. Gertrude permanecia a essa altura praticamente inédita, excetuando-se as publicações pagas de seu próprio bolso, embora fosse reconhecida nos meios marginais da literatura da época como uma importante voz nova e um espírito que norteava outros escritores. Ansiosa como estava para publicar (seu sonho era aparecer na Atlantic Monthly), ela desconfiava de Pound como uma contra-influência entre os jovens e um poderoso rival. Não obstante, os dois importantes árbitros da arte encontraram-se na Shakespeare and Company.

Pound foi convidado a visitar o famoso estúdio da rue de Fleurus, em cujas paredes com manchas de infiltração pendiam pinturas de Matisse, Derain, Gris, Braque e a maioria dos fauves e cubistas ainda eram desconhecidos antes de Gertrude e Leo Stein começarem a comprar (e a explicar, ainda que só para consumo próprio) suas obras. Gertrude Stein prostrava-se sentada com todo o peso do corpo sob seu retrato pintado por Picasso, que ela se queixava de não ser parecido. (“Acabará sendo", disse Picasso - e assim foi).

Em seu début no salão Stein, Pound falou a três por dois e com seu costumeiro entusiasmo. Gertrude Stein não estava acostumada a que alguém falasse mais que ela. Pound, em sua animação, caiu da cadeira favorita da srta. Stein ou, segundo uma versão revista do incidente, quebrou-a. Gertrude Stein julgou impossível conhecer Pound, como ela disse, depois desse tombo da cadeira. "Ele era um explicador de aldeia", na explicação dada por ela. "Excelente se você fosse uma aldeia, mas não, se não fosse o caso." A primeira, não se seguiram outras visitas. Gertrude se descartava de Pound dizendo que Alice e ela, em tal dia, iam colher flores-do-campo ou que Alice estava com dor de dente.

Após o fiasco de Ezra Pound, Sylvia Beach - a tranquila diplomata do Quartier e intermediaria discretíssima - temeu apresentar Gertrude Stein a um escritor de tanto renome como James Joyce. Joyce e Stein eram as duas presenças dominantes em Montparnasse, que nem travavam relações nem reconheciam a existência um do outro. Ernest Hemingway, como Sylvia Beach, chegou a conhecer os dois: e descobriu que perante um deles não se devia tocar no nome do outro grande 'general'.

No Salão de Gertrude Stein, "se alguém trouxesse Joyce duas vezes a baila, não voltaria a ser convidado”.

No entanto, as linhas de comunicação estavam abertas: novas panelinhas se formavam à medida que os círculos mais velhos se expandiam ou sumiam de cena. A rede parisiense era bem extensa, com conexões vitais feitas por aqueles que, no mesmo momento, se perguntavam: o que será que vem agora?

2 comentários:

Ventura Picasso disse...

Cris Valmont:
Belissíma história - belissímo blog.
Parabens!
Abs

CrisValmont disse...

Eu quem agradeço pela visita e por tirar um tempinho para apreciar um pouco de história... Volte sempre. Abraços.