Os Anos Loucos - Capítulo 7: Grana Preta e Pequenas Revistas

Se Hemingway quisesse realmente ser um escritor, disse-lhe Gertrude Stein, ele teria de largar o jornalismo.

"Se você continuar trabalhando para jornais, nunca verá as coisas, verá apenas palavras, e isso não vai dar certo... "

Embora Hemingway dependesse a princípio, para uma sobrevivência apertada, de missões no exterior para o Toronto Star, viu que havia verdade na advertência da srta. Stein. O jornalismo contribuíra muito para o estilo despojado de Hemingway - fragmentos de despachos noticiosos, experiências e observações por ele adquiridas como correspondente iriam aflorar como as cortantes e concentradas vinhetas literárias de seu primeiro esforço, Em nosso tempo..., mas sua prosa jornalística teria tido efeito insignificante e finalmente destrutivo sobre sua ficção. Hemingway confiava na opinião de Gertrude Stein em questões literárias; ele mostrava seus manuscritos tanto a ela quanto a Pound, em separado.

"Ezra acertava a metade do tempo e, quando errava, errava tanto que ninguém tinha dúvida. Gertrude acertava sempre."


Mas Pound, o incansável agente das artes, merecia confiança tanto pelos conselhos quanto pela ajuda pratica. Quando Ford Madox Ford chegou de Londres para editar a mais nova das chamadas 'pequenas' revistas, The Transatlantic Review, Ezra Pound convenceu-o a colocar o experiente Ernest Hemingway como assistente editorial. Os dois homens eram incompatíveis, em quase todos os aspectos, mas deram um jeito de colaborar, de um modo improvisado, para produzirem a mais importante publicação literária da época.

Ford, mais velho, gostava da companhia dos jovens aspirantes a escritores, mas esperava que eles demonstrassem respeito, quando não reverencia, por suas realizações e posição. Como Ford Madox Heuffer (antes de trocar o nome germânico Heuffer por Ford durante a Primeira Guerra Mundial), ele era um romancista consagrado e já escrevera dois livros em colaboração com Joseph Conrad. Ford estava enganado ao pensar que seu jovem e ambicioso assistente, dia a dia mais seguro de si, iria juntar-se ao séquito de admiradores que participavam de seus chás e festas de bal musette. Hemingway ficou feliz com o emprego, mas seu relacionamento com o editor bigodudo foi difícil desde o início.

Ford administrava a revista num escritório em mezanino, que parecia uma gaiola, no topo abobadado de uma antiga adega no cais d'Anjou. O único ocupante da gaiola poderia sentar-se, mas não conseguiria permanecer ereto. Como o espaço mal dava para o corpanzil de Ford, a exiguidade das instalações mantinha os dois editores a uma distância prudente. Hemingway, agitado e cheio da energia dos jovens, lia e editava os manuscritos ao ar livre, na rampa mais baixa do cais onde as águas cinzentas do Sena iam bater contra as pedras. Sentia-se contente por não ter de partilhar uma gaiola com o asmático Ford, cujo bafo, segundo Hemingway, fedia a morte. Quando chovia, Hemingway se retirava para o Rendezvous des Mariniers de madame LeCompte, ao lado da ponte Marie, onde Dos Passos, depois da guerra, tinha escrito Três Soldados.

A adega do cais d'Anjou abrigava também a Contact Editions de Robert McAlmon e a Three Mountains Press de Bill Bird (o logotipo da Three Mounntains, como observou um gaiato, mostrava em primeiro plano Mons Veneris). A peça central da adega era uma impressora manual do século XVII que Bird havia comprado de um tipógrafo francês. Todo mundo gostava de meter a mão na imensa roda raiada que acionava a maquina: às vezes, Hemingway descia sozinho pelo cais d'Anjou a noite para compor seu último trabalho e depois tirar provas de páginas, na antiga impressora de Bill Bird, para ver como o conto ficava impresso.

Para o constante deleite de Gertrude Stein, Hemingway viu The Transatlantic Review como a vitrina ideal para um trabalho dela, The making of Americans; e logo falou com Ford sobre a publicação da impublicável obra em forma de folhetim, a partir do número de abril de 1924. Como um favor a mais, Hemingway se ofereceu para corrigir as mil laudas do original - tarefa incrível que a própria autora ficou feliz de evitar. Mesmo depois que a amizade entre Gertrude Stein e Ernest Hemingway começou a se deteriorar, a srta. Stein se manteve grata pelo fato de Hemingway, afinal, ter conseguido a publicação de The making of Americans na Transatlantic.

The Transatlantic Review foi fundada por John Quinn, um aristocrático advogado de Chicago que esporadicamente financiou Ezra Pound, James Joyce e diversos pintores da École de Paris. (Durante anos, Georges Rouault recebera amparo de Quinn e, quando os dois finalmente se encontraram, Rouault abaixou a cabeça para chorar no ombro do seu mecenas.) No começo dos anos 20, John Quinn era o único cliente perspicaz e cioso que os irmãos Rosenberg conseguiam achar para as obras da arte moderna. Quinn, no entanto, foi bem menos eficiente como advogado das causas de vanguarda que ele tão prontamente apoiava como mecenas: coube-lhe atuar na defesa do julgamento do Ulysses em 1921, os Estados Unidos contra The Little Review, quando as partes seriadas do romance de Joyce foram consideradas obscenas. Quinn perdeu a causa, o que na prática redundou no fim de The Little Review e na suspensão da publicação do Ulysses em inglês. James Joyce ficou arrasado com o veredicto, mas foi então que Sylvia Beach correu em seu auxílio, perguntando-lhe se ela "poderia ter a honra" de publicar o Ulysses sob os auspícios da Shakespeare and Company.

Ford Madox Ford considerava John Quinn o único gentleman americano - talvez por ele ter a polidez necessária para bancar The Transatlantic Review. Com a piora do estado de saúde de Quinn, a revista acompanhou-o. Mas mesmo assim o instável empreendimento conseguiu se manter até depois de John Quinn morrer de câncer em julho de 1924. Durante a feitura dos números de julho e agosto, Ford esteve fora de Paris, sabidamente a procura de recursos para impedir que a Transatlantic soçobrasse. Em sua ausência, todo o controle editorial ficou nas mãos de Hemingway. Ao retomar, Ford acusou seu assistente de ter enchido o último número de trabalhos dos seus cumpinchas americanos. Era exatamente o que Ernest Hemingway havia feito, mas ele se melindrou com o editorial de Ford no número seguinte, que era na prática um pedido de desculpa pelo conteúdo do número editado por Hemingway.

Um dos amigos das pistas de corridas de Hemingway era um jovem poeta americano chamado Evan Shipman. "Shipman", disse Gertrude Stein, "era um garoto engraçado que deveria herdar alguns milhares de dólares quando atingisse a maioridade." Hemingway acreditou que ele iria salvar The Transatlantic Review quando atingisse a maioridade - era só esperar. Masson acreditou de igual modo que, quando e1e atingisse a maioridade, iria financiar também uma revista para os surrealistas. Quando Shipman finalmente atingiu a maioridade, Gertrude Stein observou com sarcasmo:

"Ninguém que o conhecia na época pareceu ter idéia do que ele de fato fez com sua herança."

Hemingway, enquanto isso, arrumara um novo mecenas, apropriadamente chamado Friend. Krebs Friend trabalhara com Hemingway, nos dias de Chicago, em The Cooperative Commonwealth: gravemente ferido por uma granada na guerra, ele estava casado então com uma herdeira, quarenta anos mais velha, que achou que seria uma boa terapia para Friend publicar uma revista literária e divulgar em suas paginas a própria poesia. Com The Transatlantic Review emperrada por falta de dinheiro, Ford, para desgosto de Hemingway, arbitrariamente exigiu garantias financeiras desse novo benfeitor. Ford tinha a impressão de que era maltratado por todos - "uma cortina de baeta verde na porta que qualquer um vai chutando para entrar ou sair" - e precisava manter uma aparência de autoridade e força. A combalida revista não poderia sobreviver ao continuo choque de temperamentos e a luta interna na editoria. The Transatlantic Review havia publicado obras que teriam futuro, de colaboradores importantes, como H. D. (Hilda Doolittle), John Dos Passos, William Carlos Williams, Djuna Barnes, Gertrude Stein e James Joyce. Em janeiro de 1925, a revista expirou em paz, exatamente quando se encerrava a primeira metade da década de 20.

Quando uma revista literária falia, surgia outra em seu lugar: Gargoyle, Broom, The Boulevardier, Tambour, Transition - ou todas elas, como explicou William Carlos Williams, eram a mesma e continua revista sob diferentes nomes. Poucas sobreviviam mais de um ano e muitas nunca foram além do primeiro número. This Quarter sucedeu The Transatlantic Review como a publicação mais influente da colônia de expatriados. Seu editor era Ernest Walsh, sendo a revista sustentada pela amante dele, bem mais velha, Ethel Moorhead. Um caso de um poeta-editor com uma mulher de posses, e geralmente mais madura que ele, tornara-se quase de rigueur para a fundação de um órgão literário.

A srta. Moorhead conhecera o audaz mas pobre Walsh no Hotel Claridge: ele estava no bar, desesperadamente em atraso com sua conta no hotel, e não podia deixar o Claridge porque a gerencia lhe confiscara a bagagem. No decorrer da conversa entre os dois (a srta. Moorhead pagou os drinques), ela notou sua aparência desnutrida e febril, e Walsh lhe comunicou com alacridade que era tuberculoso. (Hemingway apelidou-o de O Homem Marcado para Morrer.)

"Eu estou bem", disse Walsh, "ainda tenho cinco anos de vida”.

Na turma de Montparnasse, havia quem acreditasse que Ernest Walsh abrira seu caminho em Paris graças ao charme irlandês e a simpatia que ele despertava com seu ar abatido. Mas sua condição de tuberculoso era autentica; Hemingway tinha presenciado uma das hemorragias de Walsh e manifestou-se a respeito:

"Era verdade, e me dei conta de que ele iria mesmo morrer”.

A srta. Moorhead lançou mão de sua herança na Escócia para bancar This Quarter. Sempre que uma nova publicação surgia, Ernest Hemingway estava certo de fazer parte do esquema: voluntariamente deu assistência e conselhos, sugeriu que a revista publicasse Gertrude Stein e ofereceu um longo e ambicioso conto de sua própria autoria, 'The big two-hearted river'. Além disso, Hemingway providenciou para que Walsh abordasse James Joyce com a intenção de obter excertos da sua obra em andamento; finalmente, conseguiu pagar em parte o débito que tinha com seu mentor. Ezra Pound, com uma colaboração para o primeiro número intitulada 'Homage to Ezra'.

O destino de This Quarter dependia do periclitante relacionamento entre seus co-editores, Ethel Moorhead e Ernest Walsh. Para manter Walsh, o mais possível, sob rédeas curtas, a srta. Moorhead ameaçava tirar o nome dele do expediente. Numa dessas ocasiões, Walsh teve um acesso de raiva no quarto de hotel que os dois dividiam e atirou uma jarra d'agua em sua amante-mecenas. A tempestuosa e instável situação se complicou ainda mais quando uma bela e esguia jovem 'de perfil aquilino' passou a integrar a equipe como assistente editorial.

Kay Boyle vinha vagando num vácuo entre um casamento mal sucedido com um francês provinciano e a ambição de tornar-se parte da cena literária parisiense. Quando seu marido ficou desempregado, Kay Boyle decidiu que poderia escapar as aflições domésticas candidatando-se a um emprego na Shakespeare and Company: foi até a porta da famosa livraria da rue de l'Odeon, mas hesitou no limiar, intimidada em abordar a srta. Beach. Pelo resto do dia ela perambulou no limbo em Paris, espiando os quiosques de livros a beira-rio e indo ler na companhia solitária dos cisnes, junto ao lado do Bois de Boulogne. Noutra andança sem fim pela cidade, ela passava pelo Café de La Paix quando aí reconheceu um amigo, sentado com um grupo no terrasse. Juntou-se ao grupo e conheceu Ernest Walsh: tinham um tema de interesse comum, pois Kay Boyle também fora tuberculosa. Walsh acabou por envia-la a seu pneumologista em Paris, convidando-a a seguir para colaborar na produção da sua nova revista, This Quarter.

O inevitável triângulo de complicações começou quando Walsh se enamorou da jovem assistente, enquanto permanecia totalmente dependente da srta. Moorhead para se sustentar. O ménage à trois tornou-se ainda mais intricado depois que Ethel Moorhead passou a sentir uma atração lésbica por sua jovem rival pela afeição. A tensão entre a srta. Moorhead e Kay Boyle tomou uma forma bem peculiar: a mulher mais velha punha-se às vezes a observar a mais nova, quando essa se vestia ou estava nua no banho.

"Não consigo entender", disse ela um dia,
"na verdade você não é bonita”.

O estado de saúde de Walsh se agravou. Os três eram obrigados a mudar sucessivamente de hotel, tão logo a gerência se alarmava com os acessos de tosse do tuberculoso. Foi numa correria danada que eles editaram This Quarter. Finalmente a revista foi publicada a longa distância, do sul da França. O complexo trio se estabelecera perto de Monte Carlo, com Kay Boyle a essa altura já grávida de Ernest Walsh.

Em Paris, coube a Ernest Hemingway revisar as provas de This Quarter na gráfica, onde ninguém sabia inglês. Hemingway escreveu a Robert McAlmon:

"Agora que está morrendo, Walsh está ficando um cara muito legal. Pergunto-me se isso teria o mesmo efeito sobre o restante de nós. Mas não creio. Posso imaginar, por exemplo, o caso de Ezra."

Ernest Walsh sofreu uma última e forte hemorragia e morreu num hospital de Monte Carlo. Ethel Moorhead, mesmo ficando com a gestante Kay Boyle, permitiu que This Quarter expirasse junto com Walsh.

Ao cobrir a conferência de Lausanne de 1922 para o Toronto Star, Ernest Hemingway conheceu o correspondente Lincoln Steffens. Este impressionou-se com um conto de Hemingway, My old man, e perguntou se ele mesmo poderia mandá-lo para seu amigo Ray Long, da Cosmopolitan de Nova York. Era a época das chuvas de outono em Paris e Hemingway deu um jeito para que Hadley fosse encontrá-lo em Lausanne para um arremedo de férias para os dois. Quando Hadley chegou, estava tão perturbada e lacrimosa que seu marido foi incapaz de entender o que havia ocorrido. Hadley achara que Ernest poderia querer trabalhar em suas coisas, durante a estada na Suíça, e resolvera lhe levar de surpresa seus manuscritos. Uma valise contendo tudo o que Hemingway produzira em seu primeiro ano em Paris fora roubada na estação de Lyon.

Hemingway voltou correndo a Paris para confirmar a extensão da tragédia - que era muito pior, pois todas as cópias a carbono haviam acompanhado os originais na valise que desaparecera. Só restaram dois contos: 'Up in Michigan', que ficara enfiado numa gaveta depois de Gertrude Stein o ter julgado sexualmente explícito demais, ou inaccrochable, e 'My old man', que havia sido devolvido, recusado pela Cosmopolitan.

Na rue de Fleurus, 27, o jovem escritor arrasado foi recebido com simpatia, e um excelente almoço, por Alice Toklas e Gertrude Stein. Esta achou que algum bem deveria advir na tragédia, pois Hemingway seria obrigado a reconsiderar, partindo do zero, sua obra de juventude. Mas o próprio Hemingway estava muito abalado. As palavras da srta. Stein eram um pequeno consolo para um homem que acabara de saber que todo um duro ano de trabalho fora por água abaixo. Nenhuma perda dos seus tempos de jovem fora tão traumática desde que Agnes von Kurowski escrevera comunicando seu compromisso com outro homem.

Pouco depois de Ernest e Hadley se encontrarem na Suíça, o casal foi convidado para ir a Rapallo por Ezra Pound, que passava cada vez mais tempo nessa ensolarada aldeia da Riviera italiana, por ele transformada em refúgio das chuvas frias do inverno em Paris. Em Rapallo, Hemingway conheceu Robert McAlmon, jovem poeta que Pound descobrira e pretendia incentivar - não tanto a escrever poesia quanto a se estabelecer como editor. McAlmon era uma rara avis, um poeta endinheirado. Ele casara-se por conveniência com Winifred Ellerman, conhecida pelo pseudônimo de Bryher, o nom de plume sob o qual assinava sua poesia. Ela era filha de sir John Ellerman, um magnata da navegação britânica: o casamento arranjado permitiu que Bryher vivesse independente da família, como 'senhora McAlmon', e que Robert desse continuidade a sua verdadeira paixão, a vida de café em Paris no circuito Dome-Rotonde-Coupole.

"Eu sabia muito bem", escreveu McAlmon, "que Paris é uma puta e que ninguém devia se tomar de amores por putas, sobretudo quando elas têm inteligência, imaginação, experiência e tradição por trás de sua impiedade."

Mas o dinheiro de Ellerman permitiu que McAlmon mantivesse seu caso com aquela puta imaginativa e cruel, Paris. Hemingway se referia a ele como 'McAlimony' .

Tanto McAlmon quanto Hemingway eram conhecidos por seu charme, que ambos podiam exibir ou não a vontade, conforme o respectivo estado de espírito. Era difícil, porém, encontrar a fonte das maneiras insinuantes de McAlmon - a não ser quanto a seu cômodo hábito de apanhar os cheques -, pois ele não tinha nenhum dos atributos físicos de Hemingway, que era alto, atlético e bonito. Os dois expatriados do Centro-Oeste entendiam-se razoavelmente bem quando juntos, mas pelas costas cada qual dava alfinetadas no outro.

Todo mundo estava a par e tirava suas vantagens das pródigas mesadas que McAlmon recebia de sir John: Ezra Pound achou que tanta abundancia poderia ter melhor uso do que o pagamento de contas pelos bares de Montparnasse. Ao voltar a Paris, convenceu McAlmon a dar inicio a uma série de publicações, com o selo Contact Editions, que seriam impressas no velho prelo de Bill Bird no cais d'Anjou, com a Shakespeare and Company como endereço postal. Apesar da amizade não raro cheia de picuinhas entre McAlmon e Hemingway, a Contact Editions publicaria Three stories and ten poems de Hemingway como um dos seus primeiros lançamentos. A brochura, numa edição limitada a trezentos exemplares, pouco interesse despertou fora da colônia de língua inglesa em Paris, um grupo de literatos expatriados já familiarizados com o trabalho de Hemingway. Um exemplar de divulgação caiu nas mãos de Edmund Wilson para o primeiro comentário favorável sobre a escrita de Hemingway por um crítico importante. No mais, no mundo editorial de Nova York, Three stories and ten poems passou despercebido e nem chegou a ser resenhado, excetuando-se uma breve menção feita por Burton Rascoe no New York Tribune. Ernest Hemingway estreara como um talento original que prometia muito, mas os aplausos vinham de uma margem distante e ainda não se faziam ouvir.

Quando Hadley engravidou, Ernest Hemingway procurou Gertrude Stein para anunciar-lhe no tom de derrota e autocomiseração que ele assumia as vezes:

"Eu sou jovem demais para ser pai"

Naquele mundo sem crianças que era o lar Stein-Toklas, pode encontrar solidariedade: Gertrude Stein nunca se interessara por esposas nem mães, nem pelos problemas corriqueiros de uma casa. Ao relutante futuro pai, ofereceu por isso um copo de aguardente.

Os Hemingways voltaram aos Estados Unidos para o nascimento do bebe, um garoto que apelidaram de Bumby. Ernest viu-se forçado a encarar as responsabilidades maiores como pai de família, aceitando um emprego no Toronto Star. Ser um mercenário a soldo no jornal para qual trabalhara na Europa como repórter free-lance era uma queda deprimente e Toronto, depois de Paris, uma cidade inviável. Ele logo bateu de frente com a vontade férrea do editor, encerrando assim o breve período de respeitabilidade de classe média no Canadá. Os Hemingways, com Bumby a tiracolo, retornaram a Paris, dessa vez para um apartamento em Notre-Dame-des-Champs, 113, perto das instalações em separado dos dois santos protetores do autor, Ezra Pound e Gertrude Stein. Esta e Alice Toklas tornaram-se os padrinhos inverossímeis de Bumby, tendo cabido a Alice providenciar as roupinhas adequadas de tricô e lã para o afilhado. Ezra Pound continuou a instruir o novo pai na carpintaria literária, recebendo em troca lições na arte do boxe.

Os ruídos da serra circular de uma serraria existente no pátio mais uma vez levaram o jovem escritor a buscar o isolamento e a tranquilidade de um bom café onde fazer seu trabalho. Seu novo refúgio foi o bistrô mais próximo do quarteirão, a Closerie des Lilas, no qual os poetas e artistas se encontravam desde os tempos de Baudelaire. Da mesa do café onde escrevia, ele podia ver a estatua equestre de uma das figuras militares que mais prezava, o marechal Ney. (Hemingway era extraordinariamente supersticioso e achava que a coincidência de ter por perto o galante marechal lhe trazia sorte.) Além dessa peça de estatuaria ficava a extravagante fonte da place de l'Observatoire: míticas mulheres de bronze sustentando o universo em seus braços nus, tartarugas que se erguiam do lago esguichando água na cabeça dos cavalos em fúria (os pés de bronze das mulheres delicadamente fora do alcance do esguicho das tartarugas) - e tudo envolvido por uma verde patina parisiense. Felizmente essa extravagância escultórica teve bem menos efeito sobre o estilo sóbrio de Hemingway do que a solitária nobreza do marechal Ney.

Partindo da fonte de l'Observatoire, o jovem autor empreendia um passeio através do duplo renque de castanheiras que conduzia aos fundos dos jardins de Luxemburgo. Sentia-se "de barriga vazia, oco de fome" após uma manhã de trabalho, mas evitava os cheiros tentadores dos restaurantes do vizinho boulevard Saint-Michel: seu destino era o palácio de Luxemburgo, onde pinturas impressionistas e pós-impressionistas eram mantidas por um período de quarentena, a espera da palavra final da posteridade e do reconhecimento oficial pelo Louvre. Foi no palácio de Luxemburgo que Hemingway fez a curiosa tentativa de compreender como pintores como Cézanne criavam suas paisagens, com a finalidade de aprender a fazer o mesmo em palavras. No regresso para casa, o jovem autor esfomeado de vez em quando se esgueirava pelo parque, perto da fonte Medici, um pouco antes de o guarda fechar os portões, para matar um pombo desgarrado com uma atiradeira de fabricação caseira. E levava a ave morta para casa, escondendo-a; para o jantar, sob o paletó.

Noutras questões de economia, Gertrude Stein lhe oferecia conselhos. Ela ensinou Hemingway, por exemplo, a cortar o cabelo da mulher. Outra idéia de economia da srta. Stein era que Hadley comprasse roupas pela durabilidade e conforto - como as peças informes e pesadas que ela mesma usava -, para que o dinheiro poupado pudesse ser investido, como ocorria com o dela, em pinturas.

Depois do nascimento de Bumby, os Hemingways podiam ser vistos a vaguear pelos jardins de Luxemburgo, Ernest num terno folgado com reforços nos cotovelos, carregando Bumby no cola, e Hadley numa roupa bem simples, seguindo-o em silêncio como uma pele-vermelha.

Durante essa fase de vida marginal como escritor free-lance - um raro cheque da revista alemã Der Querschnitt, um esporádico ganho nas corridas de cavalos em Auteuil -, Hemingway conheceu Harold Loeb. Este já publicara um romance, Doodab, em Nova York e fora boxeador na faculdade - duas façanhas perigosamente competitivas para tornar-se amigo de Hemingway. Além do mais, Loeb representava a riqueza e o conforto das famílias Loeb-Guggenheim, num momento em que os Hemingways lutavam para sobreviver "com quase nada por ano". (Peggy Guggenheim, prima de Loeb, ainda não era colecionadora de arte mais já colecionava artistas: ela foi para Paris tão logo tomou posse de sua herança, ansiosa, segundo afirmou, para perder a virgindade.) Loeb era um dos editores de Broom, uma revista de arte que se propunha a "dar uma sacudida" na área. A pequena revista, editada em Nova York e Paris, era impressa em Berlim a 150 dólares por três mil exemplares, graças a taxa de câmbio corrente entre o marco e o dólar. Broom foi uma das poucas revistas que Hemingway não ajudou a editar, embora ele fizesse amizade com seu editor em Paris, Harold Loeb. Os dois, no começo, eram os mais íntimos companheiros de café, colegas de literatura e parceiros de boxe.

Por intermédio da amante de Loeb, a dançarina Kitty Cannell, os Hemingways conheceram também Pauline Pfeiffer, editora de moda na redação parisiense da Vogue. Pauline Pfeiffer iria desempenhar importante papel na vida dos Hemingways, mas contraditório com sua primeira impressão do jovem casal. Era de Hadley que ela gostava, a quem demonstrava afeto e de quem sentia certa pena. Achava Ernest um grande chato. Ela sabia que os Hemingways tinham pouco dinheiro, mas suas idéias em relação ao guarda-roupa de uma mulher eram o oposto das de Gertrude Stein: Ernest a seu ver era um bárbaro por não permitir que Hadley se vestisse bem. Pauline encarregou-se de orientar a esposa negligenciada sobre as novidades estilísticas que faziam de Paris a capital mundial da moda.

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