Os Anos Loucos - Capítulo 8: No Mundo das Melindrosas

Antes da guerra, Gabrielle (Coco) Chanel era compartilhada por dois ricos amantes num ménage à trois que se movia das terras e do pavilhão de caça de Arthur Capel a Paris, onde Chanel foi instalada em seu próprio apartamento no térreo do hôtel particulier de Etienne Balsan. Para o francês Balsan, Coco era a companheira charmosa que ele podia exibir no Delmonico's e no Maxim's, uma conquista tão decorativa em público quanto sedutora na intimidade. O inglês 'Boy' Capel considerava-a mais que uma cocote eventual. A mulher magra e de cabelos negros da Auvergnate se vestia de modo simples, no entanto com muito apuro, o que não correspondia a sua origem humilde. Ninguém teria acreditado naquilo que a própria Chanel, ao longo de toda a vida, empenhou-se em ocultar: ela havia crescido na pobreza rural; abrira caminho em Paris no circuito dos music-halls e penetrou no beau monde com a ajuda de amantes como Balsan e Capel.

Como Chanel tinha talento para desenhar e a ambição de fazer negócios, Capel montou uma chapelaria para ela, bem perto do Hotel Ritz para garantir-lhe clientela abastada. Seus chapéus foram um sucesso: Chanel provou estar em seu elemento entre as etiquetas exclusivas e os exigentes compradores da place Vendôme. Suas aspirações ultrapassavam o ramo da chapelaria: Coco Chanel pretendia tomar-se modista da sociedade. Quando ainda desenhava chapéus para a loja, observou uma noite, no teatro, uma platéia de mulheres com roupas tão rebuscadas quanta as das personagens de Molière no palco, e murmurou para Capel uma profecia e promessa:

"Isso não pode continuar assim.
Vou vesti-las de preto, e com simplicidade."

Os Ballets Russes haviam ditado o estilo da época anterior, com sua exibição exótica de orientalismo, cujo ponto de partida fora a surpreendente montagem de Sheherazade. Os figurinos e cenários de Leon Bakst tiveram grande influência sobre o principal estilista dos anos que antecederam a guerra, Paul Poiret, o qual adotara então na moda as notáveis cores teatrais de Bakst: os verdes e azuis da Pérsia, o laranja vivo e chapado conhecido como tango. (Esses tons vibrantes podem ter induzido Proust a colocar uma frase na boca do barão de Charlus: "Só as mulheres que não sabem se vestir denotam medo das cores.") Inspirado nos haréns, Poiret exibiu as jupes-culottes, os turbantes, penachos, os grandes colares de pérolas - tudo isso para ser acompanhado por perfumes sensuais de sua própria fabricação e com nomes como Mahardjha, que recendiam ao Oriente ou pelo menos o lembravam.

Mas a alta moda foi desmantelada pelo conflito europeu. No Norte devastado, a indústria têxtil entrara em colapso; a demanda de criações originais diminuíra tanto na Paris em tempo de guerra que os principais costureiros fecharam as portas ou doaram seus furgões de entrega para o serviço privado de ambulâncias de Misia Sert. Tão logo se deu o armistício, em 1918, a colméia de estilistas, cortadores, montadores, modelos e vendeuses voltou no entanto a zumbir: os lanifícios do Norte foram reconstruídos como meta prioritária do Estado; e as fábricas de seda dos arredores de Lyon retomaram a produção, competindo então com um novo e estranho tecido artificial que iria revolucionar a manufatura de meias, o nayon.

As mulheres da sociedade voltaram-se de início para Poiret, Worth e Molyneux em busca dos guarda-roupas de luxo que lhes tinham sido negados durante os quatro anos de austeridade no vestir. A Gazette du Bon Ton dava conselhos as senhoras que prestavam serviço nos hospitais militares:

"Temos de nos pôr tão belas quanto possível
para animar os feridos."

Mais uma vez Paul Poiret era o costureiro mais procurado: a momentânea revivescência das suas roupas de harém pré-guerra coincidiu com um renovado interesse pelos Ballets Russes. Mas, como comentou Chanel, esse exotismo no vestir não podia durar.

No começo da década de 20, as sufragistas americanas conquistaram o direito de voto (O que já ocorrera com as francesas em 1919), e a moda deveria refletir o espírito de libertação, rejuvenescimento e experimentação que estava no ar. Poiret já conseguira abolir, antes da guerra, o antiquado espartilho de barbatanas de baleia, muito embora transformasse as mulheres em gueixas desajeitadas ao enfia-las nas longas saias-funil presas nos tornozelos. A liberdade de movimentos era uma exigência fundamental na concepção do vestuário para a nova mulher. As balconistas usavam pela primeira vez meias de seda e experimentavam perfumes (Ambre, Fleur de Pêche), cremes de amêndoas para a pele e depiladores. Mulheres fumavam abertamente, exibindo longas piteiras de Marfim ou equilibrando um mégot ou guimba entre as unhas pintadas.

Em 1922, havia oitenta sociedades feministas com cerca de sessenta mil integrantes por toda a França: o romance mais vendido desse ano foi La garçonne, cuja protagonista de 19 anos planeja ter um bebê sem casar e criar o filho sozinha, sem depender da desprezível companhia dos homens. O romance causou protesto e escândalo, mas o presidente Poincaré não ousou proibir o livro, por medo de cair no ridículo - a única medida oficial adotada foi expulsar o autor, Victor Margueritte, da Légion d'Honneur.

As novas heroínas eram proscritas sociais como lady Duff Twysden e Nancy Cunard, de aparência enxuta e esfaimada, ou Zelda Fitzgerald, a garota não-estou-nem-aí da era do jazz. Essas eram os modelos para personagens de ficção, como também para a aparência e maneiras de se vestir que as mulheres dos anos 20 queriam. Ninguém viu com mais clareza do que Coco Chanel que as mulheres haviam emergido do vestíbulo para o mundo mais vasto da independência e novas possibilidades - como ela mesma fizera.

O incerto e cambiante mundo da moda constituiu um desafio para os melhores instintos e idéias de Chanel. De inicio, Capel pode ter bancado a chapelaria como um modo de presentear sua atraente e decidida amante com um dinheiro que poderia ter sido para oferecer-lhe uma jóia de Cartier. Logo se tornou evidente que Chanel era não só uma talentosa criadora de estilo, como também uma mulher de negócios de muita inspiração e visão: se ela queria estabelecer sua própria maison de couture - pourquoi pas? O astuto lado camponês de seu caráter e suas transações mundanas com os homens deram a Coco Chanel um desmedido respeito pelo poder do dinheiro. O investimento feito por Capel foi um meio para garantir o começo; depois disso, ela faria nome e fortuna por conta própria.

Foi pouco antes da guerra que Coco montou a casa Chanel na rue Cambon, onde se manteria como um marco por toda a década de 20 e além. De seu quartel-general no ponto mais importante do quartier d'élégance, Chanel se preparou para lançar um desafio ao príncipe reinante da moda, Paul Poiret, em seus próprios domínios. Na esteira do cubismo, ela criou cubos e retângulos a partir de um simples metro de pano; suprimiu as linhas curvas que acentuavam seios e nádegas, suspendeu as bainhas, eliminou os detalhes rebuscados. As linhas de Chanel, embora austeras, eram graciosas, e suas roupas, nunca tão exuberantemente femininas quanta as de Poiret, exerciam forte apelo sobre as mulheres modernas, independentes e - como ela - dedicadas a uma carreira. No despojamento de seu estilo, Chanel buscava o que ela mesma chamou le luxe dans la simplicité. Poiret, por sua vez, suspirava, vendo o mundo de Chanel como linear e sem graça e a direção que ela seguia como um empobrecimento de luxe:

"Até há pouco as mulheres eram belas e esculturais, como a proa de um navio. Agora todas parecem telefonistas subnutridas."

Lentamente, mas com devastadora eficiência, Chanel invadiu o território de Poiret, desenhando modelos para as que desertavam da clientela exclusiva dele.

Na mesma medida em que a aventura comercial de Coco Chanel começou a mostrar que tinha enorme futuro, sua vida pessoal, no entanto, foi sofrendo reveses. Apesar de ela ser muito afiada para as brigas de foice que enfrentou no mundo da moda, seus sagazes dotes de avaliação a traíram nos negócios do coração. Contra todas as indicações, Chanel cismou que Boy Capel estava decidido a se casar com ela. O aristocrata britânico, ao invés disso, comprometeu-se com Diana Lister, uma inglesa socialmente aceitável de sua própria posição e origem. A moda leviana dos ricos, Boy sugeriu a Coco que poderia apresentá-la à noiva - para que assim a amante pudesse abençoar seu casamento.

Bastou Chanel recuperar-se do choque do noivado de Boy para que logo mergulhasse numa dor mais profunda: a notícia da morte dele. Em dezembro de 1919, Boy Capel faleceu num acidente de carro perto de Saint Raphael. Chanel já havia quase aceitado o casamento de Boy, mas sua morte - a perda do único homem que ela amara - foi um golpe do qual não pode se recuperar. Coco Chanel caiu em letargia e numa profunda depressão: até mesmo seu quarto foi guarnecido de preto, a cor que ela destacara na moda. Boy deixou-lhe uma herança de quarenta mil libras esterlinas. Ela nunca mais ficaria sem dinheiro; estava rica, mas sozinha.

Uma amiga íntima, Misia Sert, uma da figuras mais influentes no cenário sociocultural de antes da guerra, ofereceu-lhe a efusão e o consolo de uma companhia animada. Misia tirou Coco de sua vida enclausurada e sombria e a atraiu para a luz. O marido dela, o pintor José-Maria Sert, encarregou-se de redecorar a residência de Chanel na cidade, na rue du faubourg Saint-Honoré, 29, e mudou o esquema de cor: o quarto, de preto, passou para cor-de-rosa. O exemplo de Misia como protetora das artes e anfitriã do Tout-Paris inspirou Chanel a abrir seu próprio salão para aquele variegado desfile de poetas, príncipes, artistas e gente interessada em se tomar conhecida.

Jean Cocteau tomou-se um habitué da rue du faubourg Saint-Honoré, 29: o talentoso poeta-pintor-cineasta, com seu espírito gregário e fino, podia ser maliciosamente engraçado depois de um dia fatigante de provas e explosões de gênio na rue Cambon. Por duas vezes Chanel amparou Cocteau - financeira e emocionalmente - em curas de desintoxicação por seu vício do ópio. Amparou-o também na grande perda de sua vida (da mesma forma que Misia fizera com ela), quando o jovem protegido de Cocteau, Raymond Radiguet, autor de O diabo no corpo, morreu aos vinte anos em 1923. Chanel, a essa altura, já se envolvera com o poeta Pierre Reverdy, que tinha sido co-fundador com Apollinaire da revista de arte Nord-Sud e era um dos surrealistas emergentes. Na dupla condição de amante e mecenas de Reverdy, Chanel patrocinou a publicação de um livro de poemas dele, ilustrado com aquarelas de Picasso.

Essa foi a fase em que Picasso seguiu Jean Cocteau no seu frívolo borboletear pela sociedade - a fase "não confiável" de Picasso, nas palavras de Gertrude Stein. O salão de Chanel era um dos locais prediletos para as visitas do pintor, que estava sendo cortejado por colecionadores ricos e paparicado pelos novos-ricos caçadores de celebridades.

"Picasso continua a fazer uns bons trabalhos", escreveu Juan Gris a Kahnweiler, "quando tem tempo."

Outro membro da roda de Chanel era um amigo de Picasso, Max Jacob, que exercera a função de consultor de superstições de Paul Poiret (para indicar que cores eram propícias ao bonheur ou malheur das usuárias). Religioso e místico desde sua conversão ao cristianismo, Max Jacob sugeriu a Chanel que cortasse o cabelo como o de Jesus Cristo e lançasse o novo penteado a seu próprio modo persuasivo.

Na verdade, Chanel passou a usar cabelo curto antes que essa onda pegasse e antes também do corte a la garçonne, ainda mais de menino. Para que as novidades da chapelaria se harmonizassem - o chapéu cloche ou em forma de sino, que revestia a cabeça como um elmo, os bandeaux ou faixas de tecido ou jóias na testa, os turbantes e os chapéus de toureiro -, era inevitável que as mulheres usassem o cabelo mais curto. O cabelo tosado já conhecera breve sucesso na França, bem as vésperas da guerra, quando o cabeleireiro Antoine convencera Eve Lavallière a aparecer no palco com um corte rente extremamente audacioso. Mesmo a dançarina Caryathis precedeu Chanel no abandono dos esplendores da cabeça na era anterior, quando podou suas longas tranças e, como um queixume, deixou-as sobre o travesseiro de um amante indiferente. Mas o que houve de mais extremado no tocante a esse tema foi o aparecimento de Genica Athanasiou como Antígona, na montagem de Jean Cocteau em 1922: Cocteau persuadiu-a a raspar completamente a cabeça e arrancar as sobrancelhas, para amoldar-se a sua concepção da heroína grega.

Antígona seria um marco nos acontecimentos teatrais também sob outros aspectos: a música foi composta por Arthur Honegger, os cenários concebidos por Picasso e os figurinos desenhados por Chanel.

"Pedi os figurinos a mademoiselle Chanel", anunciou Cocteau, "porque ela é a maior modista da nossa época e não posso imaginar a filha de Édipo mal vestida."

No minúsculo teatro experimental l'Atelier, pouca atenção foi dada a peça de Cocteau, mas Chanel recebeu considerável publicidade por sua primeira incursão na criação de figurinos. Man Ray fotografou os trajes, Georges Lepage fez uma série de desenhos das criações de Chanel para a Vogue francesa e uma crítica da peça saiu sob o título 'Chanel virou grega'. Chanel passara por sua fase russa no ano anterior, quando tanto os russos como tudo o que procedia da Rússia achavam-se à la mode. Contratara condessas arruinadas, vendedoras russas e modelos eslavas de ossos finos para lançar uma linha exclusivamente russa. Isso foi uma aberração temporária, um afastamento do clássico padrão Chanel: as blusas eram fofas, no estilo camponês dos mujiques, e os bordados e adornos reapareceram - excessos que ela impiedosamente eliminara com a simplificação de sua linha cubista. Mas a fase báltica na rue Cambon, 31 não durou muito mais do que o interesse de Chanel pelo grão-duque Dimitri Pavlovich, um exilado russo.

Durante a época em que Misia Sert estava iniciando Chanel em cafés e salões, Coco conheceu Dimitri numa festa dada por Marthe Davelli. Aos 29, o grão-duque era onze anos mais novo que a grande dama da moda, mas - na tradição dos aristocratas duros no exílio - ele tornou óbvio seu interesse pela mulher mais velha e abastada. Marthe Davelli, notando esses avanços, chamou Coco à parte para revelar o que talvez já estivesse claro para Chanel, que Dimitri era amante dela. A avidez de Dimitri por champanha e gravatas Charvet já estava indo um pouco além do que Marthe Davelli podia se permitir. Por acaso Coco se interessaria em adotar o bonito e distinto nobre russo? (O roteiro poderia ter sido escrito por Colette.)

Chanel herdou assim um grão-duque como companhia e amante: ela gostava dele, mas Dimitri nunca poderia ser mais do que um substituto casual, ainda que decorativo, para seu finado grande amor, Boy Capel. Como o caso com Pierre Reverdy, a quem ela conheceu durante o interlúdio russo com Dimitri, ou um breve caso com Stravinski em 1920, esses relacionamentos eram distrações passageiras da genuína perda. Reverdy saiu da vida de Chanel para se converter num religioso contemplativo num mosteiro nos arredores de Paris. Inevitavelmente, o grão-duque Dimitri, tendo colocado a si mesmo e a seu título no mercado livre, a deixou de igual modo.

Um bando de herdeiras americanas tinha invadido Paris num corre-corre as vezes frenético por maridos europeus com título de nobreza. As transações eram frias. (Boni de Castellane falou da sua chambre de penance ao referir-se ao quarto no qual dormia com sua rica esposa americana: "Ela nunca vai saber como a amo pelo seu dinheiro.") Assim a herdeira Audrey Emery tomou-se duquesa de um ducado que não mais existia ao investir sua fortuna no casamento com o grão-duque Dimitri Pavlovich. Se a mudança mercenária no coração de Dimitri magoou Chanel, ela soube esconder as marcas - até mesmo de Misia.

Para preencher as eventuais lacunas deixadas por esses rompimentos, Chanel concentrou-se no trabalho, num compromisso total com a moda. Estava lá desde o começo, como se criasse bonecas de papel, cortando moldes; e participava de todas as etapas, desde o corte dos panos até um retoque ocasional nos alinhavos e bainhas. Para os desfiles nos salões de primavera e outono, a própria Chanel escolhia os modelos e ensinava-lhes um modo de desfilar sem afetação na passarela, que tanto fosse atraente para as "telefonistas subnutridas" quanta para a condessa de Noailles.

Chanel estava ciente do apelo esnobe da alta costura, mas tratava-se de um esnobismo que poderia ser explorado além dos limites do faubourg Saint-Honoré. Ela antecipou a comercialização em massa das roupas das grandes etiquetas, a explosão do prêt-á-porter; já havia aceito o desafio de vestir não apenas o beau monde, mas tout-le-monde.

Usando materiais de nomes estrambólicos como rodóide, galalite e nacrólogo, Chanel começou a criar e comercializar bijuterias baratas, os complementos ideais para a despretensiosa elegância de suas roupas. Nada mascarava essas bugigangas, artificiais e coloridas, para fazê-las passar por algo mais do que eram: tornou-se tão aceitável pendurar uma jóia de fantasia de Chanel num vestido para a noite quanto usá-la durante o dia. Sem maiores problemas, as bijuterias poderiam ser dispensadas tão logo a moda mudasse.

O primeiro dos grandes costureiros a acrescentar os perfumes como linha auxiliar de sua moda foi Paul Poiret. Chanel tornou-se uma concorrente na área ao descobrir Ernest Beaux, o filho, francês por um lado, do parfumier da corte do czar. Em seu centro de perfumaria em Grasse, Beaux fizera experiências com um produto extraordinariamente sutil, cuja fragrância durava toda uma noite, sem trazer desagradáveis vestígios de sua fonte odorífera. Com a fórmula de Beaux e o auxílio de um químico que tinha saído da Coty, Chanel lançou o produto que iria tornar seu nome quase um sinônimo de perfume.

Mais uma vez seu instinto e seu senso de ocasião estavam certos. Até mesmo a forma da embalagem foi uma inspiração: um frasco simples de bordas retas, liso como uma gema bem talhada. Eliminando do rótulo os floreados art nouveau, o Chanel n.º 5 - em letras pretas sobre fundo branco - tranquilamente se anunciou como um clássico.

Misia e José-Maria Sert foram presenças constantes na vida de Chanel: estavam sempre por perto para livra-la dos seus cismáticos desânimos. Em Misia ela confiava; José-Maria a distraia. Na intimidade, Chanel não manifestava muita admiração pelo talento artístico de José-Maria - o decorador mais mimado da sociedade e o muralista da época -, mas divertia-se com ele e era consolada por sua farta generosidade. Logo no início dos anos 20, os Serts convidaram Coco para uma viagem de carro pela Europa: José-Maria insistia em pagar os gastos mais insignificantes, esforçava-se ao máximo para despertar o interesse de Coco pela arte, era incansável no papel de bom companheiro. O relacionamento entre Coco e Misia era mais complicado. Nessa época, duas pessoas vistas constantemente juntas, abertamente afeiçoadas uma a outra, invariavelmente eram tomadas por amantes. A amizade entre as duas foi intensa, quase de rivalidade fraterna, e de uma década se projetou a seguinte - uma aliança de toda a vida baseada tanto no afeto quanto na competitividade. A grande ironia em sua amizade cambiante e ambivalente era que Misia, tendo se casado três vezes, invejava os amantes de Chanel, ao passo que essa, apesar de suas tantas paixões, teria aceito de bom grado casar-se.

Durante a viagem pelo continente, Misia apresentou Coco a Sergei Diaghilev num café em Viena. É pouco provável que o grande empresário tenha dado mais atenção a bela morena tranquilamente sentada ao lado de Misia além de murmurar: "Encantado." Diaghilev não tinha grande interesse por mulheres: Misia era uma extraordinária exceção. Ele estava em apuros e precisava detalhar suas dificuldades financeiras de então à querida amiga, já que Misia sempre fora sua confidente mais íntima e, de quando em quando, sua salvadora.

Certa vez, quando num dos seus espetáculos de balé a cortina do palco demorou inexplicavelmente a se abrir, Diaghilev apareceu sem mais nem menos no camarote de Misia:

"Você teria vinte mil francos? O figurinista cismou de não deixar abrir a cortina se não for pago agora."

Imediatamente Misia mandou seu motorista buscar um talão de cheques.

O atual dilema de Diaghilev era este: a temporada em Londres fora brilhante, mas um desastre financeiro, e a companhia enfrentava terríveis dificuldades. Ele precisava remontar o sempre popular A sagração da primavera, mas não tinha como contratar a grande orquestra que a obra de Stravinski exigia. Durante todo o agitado monólogo de Diaghilev, a companheira de Misia manteve-se em silêncio.

Quando Diaghilev retornou a Paris, ainda muito desanimado, recebeu uma inesperada visita no Hôtel Continental. Não conseguiu localizá-la nem lembrar seu nome. Era Coco Chanel, que fora presenteá-lo com um cheque de trezentos mil francos. Os planos para A sagração da primavera podiam realizar-se com êxito - e sob a condição de que o presente de Chanel permanecesse anônimo: Diaghilev nunca deveria falar desse dinheiro a ninguém, nem lembrar a benfeitora sua generosidade.

8 comentários:

Mazane disse...

Preto e simplicidade,isso sempre pode salvar uma mulher!!!!

Jeferson Cardoso disse...

Assisti ao filme, "Coco antes de Chanel" e achei fantástico. Essa mulher revolucionou a moda feminina.
Jefhcardoso do
http://jefhcardoso.blogspot.com

Augusto Mariante disse...

O menos sempre é mais. Essa mulher veio ao mundo para deixar bem claro que é na simplicidade que se encontra o mais profundo do que quer que seja. A MODA foi seu pedaço de comunicabilidade com o mundo, sua mônada criativa, seu ganha pão e sua libido sublimada. Viva o FORD T e Viva o Pretinho Elementar - é só mudar o acessório e você estará pronto para o que der e vier. Os homens também não devem usar ternos e sapatos sempre pretos (as meias também, please!)? Antonio Augusto - antonioa.mariantefurtado5@gmail.com

N. disse...

Achei este blog, simplesmente adorável e fascinante. E o assunto muito me interessa.
Acaba de ganhar mais uma seguidora.

Pamela disse...

Faço minhas as palavras da senhorita acima. Me apaixonei por cada foto postada.

N. disse...

Olá, Valmont. Obrigada, pela visita e pela opinião, embora eu pense que minha maneira de escrever está longe de ser fantástica. Em falar em coisas fantásticas, lembrei-me de Zelda.
Não só gosto de Zelda, como ela é minha influência, e minha desculpa para insensatez... qualquer coisa absurda que faço, logo penso: é como Zelda.
Ah, aguardo também pelo filme, mas receio pelo diretor que é um imbecil e dirige filmes condensadíssimos.
Bem, ontem começei a ler os textos postados no seu blog desde o início. Pretendo ler todos para depois ler apenas os atuais; E está sendo um grande prazer.

Beijos.

N. disse...

Deveras? Ah, adoro toda esta "algazarra" que precedeu o puritanismo. Mas são poucos os que conhecem afundo, não?
Muito obrigada, Valmont. É muito bom também saber que alguém gosta do que eu escrevo. Mas não acredito na minha escrita, pra mim ou é incrível ou é bom, e se for bom então é medíocre. Me considero medíocre, mas disposta a melhorar. Mas aceito seu elogio e este muito me cativa.
Bem eu li a biografia de Fitzgerald que você escreveu, muito bem escrita, permita-me observar. Mas alguns fatos que são o mais conhecido pelo público porém um tanto superficíais digamos assim, por exemplo o tempo que escreveu "O Último Magnata" ele teve como amante a "falsa inglesa" Sheilah Graham, que deixou de citar, o livro Mentiras Íntimas, fala sobre o relacionamento dos dois. Ou pelo fato de Fitzgerald abandonar Princeton em 1917 para entrar no exército. Neste caso, ele não abandonou ele foi expulso (ou melhor, convidado a se retirar) e pediu ao diretor para escrever uma carta dizendo que ele havia desistido pelo motivo do exército. Scott não via glória no exército e nunca foi bom "de modo atlético". Conhecemos o lado de Scott, sabemos quão narcisista era este, não? Pois bem, eu estou lendo a segunda biografia dele, e estudo documentos, reportagens, textos, tudo sobre Scott, enquanto leio vagarosamente suas obras. Desculpe pelo comentário extenso, espero que minhas sugestões e informações sirvam de algo.

Beijos.

N. disse...

Claro, será um prazer compartilhar algum material biográfico de Scott, contigo.
Vou reunir alguns artigos que possuo, que acredito ser relevante para a biografia e lhe coloco a disposição.
Abraços.