Gertrude Stein

De Gertrude Stein é comum dizer-se que "descobriu" Picasso, que inventou a expressão "geração perdida", aplicada a Hemingway e Fitzgerald, que aconselhou Paul Bowles a dedicar-se à música e que se considerava um gênio. Sabe-se também que possuía uma das maiores e mais ricas coleções de arte do século XX e que essas obras se encontram, agora, espalhadas por vários museus. No seu apartamento, em Paris, acotovelavam-se personagens do mundo artístico e da sociedade da época: Pablo Picasso, Braque, André Masson, Tristan Tzara, Marcel Duchamp, Jean Aron, Djuna Barnes, Nancy Cunard são alguns dos nomes constantes de uma lista interminável.

Em 1999, cento e vinte e cinco anos depois do seu nascimento, sucederam-se as manifestações de apreço, análise, recuperação da sua obra: teatro, ficção, poesia, biografia, ópera. O século passado terminava, assim, com uma "revisão da matéria" lançada aos ventos por Stein. A partir do estudo da sua obra e personalidade, noções como modernismo e pós-modernismo, etnicismo, lesbianismo, elitismo, estética, nunca mais foram as mesmas.

Gertrude Stein nasceu a 3 de Fevereiro de 1874 em Allegheny, Pennsylvania, Estados Unidos e passou a maior parte da infância entre Viena e a Califórnia. De acordo com as recordações de uma tia, "aos catorze meses andava sozinha, imitava e repetia tudo." Tinha oito anos quando começou a escrever, uma atividade que rapidamente se transformou em obsessão, tal como a leitura. As suas preferências iam de Shakespeare a livros de História Natural. Na escola mostrou imediatamente o fascínio que sentia pela estrutura das frases.

Em 1893 entrou para o Radcliffe College mas, em 1903, instalou-se em França com o irmão, Leo, depois de ter passado por um curso de medicina na Universidade Johns Hopkins e de ter experimentado o estudo de psicologia com William James, com quem desenvolveu uma relação estreita e privilegiada ao ponto de, num belo dia de Primavera, escrever no topo da página de um exame:

"Querido Professor James. Espero que me perdoe mas hoje não me apetece nada fazer um exame de filosofia.”

Gertrude e Leo, munidos de uma generosa mesada facultada pelo irmão mais velho depois da morte do pai, tornaram-se rapidamente o centro da atividade cultural, em Paris. Leo era pintor e crítico de arte mas acabou por se tornar um neurótico incurável, paralisado por desordens alimentares e pela surdez, a que se juntou um "bloqueio" artístico e um ruinoso fetichismo por sapatos. Em "Sister, Brother" (Ed. Putnam) a biógrafa Brenda Wineaple traça o perfil destes dois irmãos ligados por sentimentos profundos e uma feroz interdependência, agravada pela morte da mãe quando Gertie tinha catorze anos e Leo dezesseis.

Em Paris desenvolveram uma relação estreita com Picasso e, simultaneamente, com o seu grande rival, Matisse. Braque, Van Dongen, Derain e Juan Gris, também faziam parte do círculo de amigos íntimos, sendo este ultimo o favorito de Stein. Para além de pintores o famoso n.º 27 da rue de Fleurus acolhia, regularmente, todas as semanas, a visita de Apollinaire, Max Jacob, André Salmon, Erik Satie, Jean Cocteau, Sherwood Anderson, Ernest Hemingway, Scot Fitzgerald. Gertrude gostava de reunir a sua "corte de gênios", presidida por ela própria. Mas havia quem lhe resistisse como, por exemplo, James Joyce que afirmava "detestar mulheres intelectuais" e, em certa medida, Djuna Barnes, a sua rival na escrita, que preferia frequentar a companhia de Nathalie Barney e do seu grupo de lésbicas sofisticadas. Gertrude nunca gostou de Joyce, que considerava um trapaceiro, e irritava-se por ele não se vergar perante a sua forte personalidade e por não se mostrar agradecido pelo fato de ela o ter incluído no seu grupo de convidados que incluía "discípulos" obedientes como Hemingway de quem ela dizia :

"Fui eu que o ensinei a escrever.”

Em 1907, Stein começou a viver com Alice B. Toklas, uma amiga dos seus tempos de S. Francisco. Foi uma união muito feliz que durou todo o resto da vida da escritora (Gertrude morreu a 27 de Junho de 1946 e Alice sobreviveu-lhe 21 anos) e que foi amplamente documentada em "Autobiografia de Alice B. Toklas", escrita pela própria Gertrude Stein, aos cinquenta e oito anos, numa altura em que decidiu afastar-se do seu estilo mais rebuscado e escrever algo simples e corriqueiro. A narrativa era-lhe, supostamente, ditada pela sua companheira por esta "estar demasiado ocupada com os problemas caseiros do dia-a-dia”

"Robinson Crusoé" de Daniel Defoe serviu de modelo para esta "autobiografia" em que Stein se divertiu a designar-se como "gênio" e a descrever os detalhes mais íntimos da vida de todos os dias, com as festas, os jantares, as exposições, os amores, ódios, zangas e reconciliações de amigos, inimigos ou simples conhecidos.

Gertrude Stein afirmou que não queria que as emoções ditas "femininas" dominassem a sua vida, preferindo ser ela a dominar o mundo (daí a sua imagem iconográfica muito utilizada pelas suas admiradoras, na qual a sua cabeça, de perfil, se assemelha à de César), reproduzindo-o nos seus escritos e reprimindo sempre a eventual primazia da emoção. A única paixão permitida era reservada à escrita, uma afirmação transmitida, à sua maneira, muito peculiar, através da voz de Toklas na "Autobiografia" :

"(Ela) sabe que a beleza, a música, os adornos, até mesmo acontecimentos, não deveriam ser a causa de emoção nem deveriam servir de material para poesia ou prosa. Nem mesmo a emoção por si deveria ser a causa de poesia ou prosa. Estas deveriam consistir numa reprodução exata de uma realidade, tanto interior como exterior".

Quando Gertrude e Alice começaram a viver juntas, a primeira tinha acabado "Three Lives", um conjunto de três histórias (retratos) de três mulheres e trabalhava numa obra monumental baseada na sua própria família a que chamou "Making of Americans". O momento foi especialmente dramático porque se tinha separado definitivamente de Leo, com quem se mantinha em estado de guerra declarada por ele não apreciar os seus escritos. Zangaram-se e nunca mais se falaram. Gertrude, que fora educada por um pai tirânico, ao lutar raivosamente com o irmão que adorava, para impor a sua identidade como escritora, criava uma barreira entre ela e o "mundo masculino". O mais interessante é que, como é possível constatar através da já referida "Autobiografia", era Stein quem assumia o papel de marido no casal, "escrevendo e discutindo arte com os homens", enquanto Alice cozinhava e tratava da casa e "se sentava a conversar sobre chapéus e roupas com as mulheres dos artistas que vinham de visita".

"Three Lives", o estranho livro que Stein escreveu em 1905, foi concebido, segundo ela, a partir de um quadro de Cézanne que os dois irmãos tinham adquirido no inverno anterior. É a história de Anna, Lena e Melanctha, esta ultima considerada por Richard Wright como "a primeira narrativa longa e séria sobre a vida dos negros, nos Estados Unidos", onde se acumulam detalhes psicológicos e cenas da vida quotidiana que a escritora observava durante os seus passeios a pé em Montmartre, quando ia e vinha de e para o ateliê de Picasso, onde quase todos os dias, posava para o seu famoso retrato.

A influência de Cézanne na sua obra deu origem ao seu estilo repetitivo e hipnótico e ao "cubismo na literatura" a que ela chamava o seu próprio "método de composição". Este assentava nos seguintes princípios: "...começar sempre de novo, sempre, sempre", "usar tudo" e "utilizar um presente contínuo". Em Cézanne, ela admirava a técnica a paciência e o método bem como o fato de, na composição, os detalhes terem tanta importância como o todo.

Gertrude foi uma escritora incansável. Os editores ficavam chocados com a sua pontuação, com as suas frases inacabadas que eram retomadas mais adiante, com as suas repetições. Ela dizia que tanto fora influenciada pelo cubismo como por Mark Twain o que marcava a sua relação com a cultura americana, apesar de ter vivido quase toda a vida na Europa. Numa viagem aos Estados Unidos, durante a qual proferiu palestras e conferências, foi acolhida triunfalmente em todo o lado, chegando a ser recebida na Casa Branca com pompa e circunstância.O seu cosmopolitismo e desenraizamento contribuíram para estabelecer o mito de Paris como centro cultural de eleição para infindáveis gerações de americanos, sem nunca deixar de enaltecer as virtudes do seu país natal. Escreveu que, "...(os Estados Unidos), ao começarem a criação do século vinte nos anos sessenta do século dezenove, tornaram-se o país mais antigo do mundo".

Fisicamente, Gertrude era a típica matrona germano-americana, de corpo e traços fortes, uma figura que nada tinha de feminino. Mas o seu humor, o seu sentido de auto-estima e o seu espírito finamente irônico, aliados ao fato de ser extremamente mundana e muito "snob", faziam dela uma personagem muito atraente. Hemingway descreveu-a assim: "Mademoiselle Stein tinha uma constituição pesada, como a de uma camponesa... com uns belos olhos e um rosto germano-judeu que... fazia lembrar o das mulheres do campo do norte de Itália, com as suas roupas, o seu rosto sempre móvel e o seu adorável cabelo, espesso, vivo, como o das imigrantes. Quanto a Alice, "uma gárgula amigável" foi descrita por Hadley Hemingway como, "...um pedaço de fio eletrificado, magra e pequena, com ar de espanhola e olhos muito escuros e penetrantes." Mabel Dodge, uma amiga de Gertrude fez o seguinte comentário em relação à sua aparência:

"era atraente de uma forma positiva e generosa, apesar da sua amplitude física. Parecia apreciar a sua própria gordura, uma atitude que é sempre uma ajuda, no sentido de se ser aceita por outras pessoas. Não possuía nem um traço daquele embaraço tonto que os anglo-saxônicos demonstram em relação à carne. Ela glorificava a sua."

Em "Paris é uma Festa", Hemingway conta que não foi capaz de a encarar uma vez em que teve de esperar no salão do apartamento, enquanto ouvia gemidos e suspiros, no quarto situado mesmo por cima. Só a idéia das duas damas embrenhadas num ato sexual bastante ativo, fizeram-no bater em retirada. Mas Hemingway era um misógino e o seu machismo tinha de ser arvorado de uma forma óbvia que também passava pela repulsa em relação ao lesbianismo.

Virginia Woolf, Willa Cather, Colette e Gertrude Stein apresentam entre si certas semelhanças num universo romanesco em que a "sedução maternal" é o reflexo de uma visão muito feminina do universo do amor. Embora com personalidades diferentes, elas representam uma idéia de sucesso entre as "mulheres de letras". Todas elas tiveram a liberdade de produzir os seus escritos, alcançando uma enorme mestria na utilização das suas línguas maternas. Também foram capazes de desfrutar um certo conforto, ao lado de companheiros e companheiras que se preocuparam em fornecer-lhes condições para trabalharem. Todas conheceram o sucesso em vida e gozaram plenamente esse privilégio, colocando a literatura à frente de tudo. É verdade que também escreveram sobre a maternidade mas, de todas elas, só Colette teve uma criança, já quando estava na meia idade ("Je suis un écrivain qui a fait un enfant" dizia ela quando se referia ao "acidente").

Gertrude Stein foi mais do que uma senhora (com um ar bastante masculino) que dava ótimas festas e entretinha os seus amigos e convidados com ditos espirituosos e inteligentes, ao mesmo tempo que os deliciava com os famosos cozinhados da sua companheira. Foi uma escritora que inovou em literatura e uma importante mentora da arte moderna. Diz-se que ela fez com as palavras o que Picasso fez com as tintas. Os seus escritos "impressionistas" nos quais utilizava termos que lhe eram familiares e que lhe suscitavam uma determinada reação, tinham como finalidade descobrir um significado oculto, a sua verdadeira natureza. Para muita gente, ela maltratou a língua inglesa, abusou dela e "desfigurou-a". A sua intenção era criar uma nova linguagem em que a qualidade do verbo deveria ser intrínseca e não o espelho de uma imagem preconcebida. É famosa a sua frase, "Rose is a rose is a rose", na qual ela condensou toda a sua teoria: o sentido deveria surgir a partir da entoação do conjunto de palavras, fazendo emergir, do subconsciente, o significado perfeito até aí mergulhado nos recônditos da mente.

Gertrude Stein tem sido utilizada como ícone de grupos homossexuais. Um dos seus primeiros livros "Q.E.D." (Quod Erat Demonstrandum) ou "Things As They Are", que ela escondeu e fingiu ter esquecido durante anos, contava a história de um triângulo amoroso formado por três mulheres, uma das quais era uma imagem decalcada de si própria, no tempo em que estudava Medicina. Aliás, os seus biógrafos estão convencidos que a sua desistência do curso na John Hopkins University ficou a dever-se às agruras de uma paixão e não, como ela disse, ao fato de se "aborrecer mortalmente".

O fato de mais tarde, em Paris, fazer questão de demonstrar abertamente que desafiava as convenções, contribuiu para uma admiração por parte das comunidades homossexuais. A sua qualidade de judia tão pouco a marcou com sinais de exclusão. Durante a Primeira Grande Guerra, tanto ela como Alice fizeram questão de ficar em Paris. Compraram um Ford em muito mau estado, a que chamaram "Auntie" e usaram-no para ajudar a Cruz Vermelha e transportar feridos para a província. Durante a Segunda Grande Guerra trabalharam para a Resistência, conseguindo que os ocupantes nazistas nunca descobrissem que eram judias.

A imagem de Gertrude Stein ficará sempre associada ao retrato que Picasso fez dela: uma forma mais ligada à escultura do que à pintura, uma figura sólida, maciça, que nos olha com o ar remoto de um monge tibetano.

A sua forte personalidade marcou indestrutivelmente todos os que com ela privaram. Adorava a escrita, acima de tudo (seguiam-se, na ordem dos seus afetos, Alice e os seus dois cães, Pépé e Basket) e procurou transformar o romance e a linguagem do século XX da mesma forma e com o mesmo gênio que o seu amigo Picasso, em relação às artes visuais.

Morreu a 27 de Junho de 1946 e foi enterrada no cemitério Père Lachaise, em Paris. Dias antes, na cama do hospital onde estava internada, perguntara a Alice:

"Qual é a resposta?"

E, uma vez que a companheira não lhe respondeu, insistiu.

"Então, qual é a pergunta?!".

O seu humor e o seu gênio permaneceram intactos até ao fim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Como deixei dito, o seu blogue é fantástico – no sentido atual do termo, pois o termo “fantástico” tinha outras conotações na Idade Média ou no Renascimento. Também como eu disse, essa é uma das minhas épocas históricas preferidas, em que gostaria de ter conhecido inúmeras personalidades, muitas das quais estão presentes no seu blogue. Das mais fascinantes que não estão, e que mereceriam uma matéria exaustiva, eu gostaria de lembrar:
- Hellé Nice, piloto de automóveis que correu em diversos Grand Prix na Europa, EUA e Brasil, juntando o arrojo inesperado das mulheres piloto de competição na época (outra piloto famosa foi Charlotte Versigny) que pilotavam carros então rapidíssimos como os Bugatti (Hellé Nice) e Talbot (Charlotte);
- A pintora polaca Tamara de Lempicka, autora do fantástico retrato da Duquesa de La Salle (1925), um autêntico manifesto visual feminista de uma “pintora do mundo” (nasceu em Moscovo, viveu em Paris, América e México, onde faleceu);
- Margaret Bourke-White, fotógrafa americana com preocupações humanistas e sociais. Foi uma aventureira do seu tempo, trabalhando para a revista Life. Foi uma pioneira da fotografia aérea e ficou famosa por ter fotografado a mãe de Estaline e Gandhi na intimidade.
Foram mulheres extraordinárias e marcaram o seu tempo. Também gostaria de ter conhecido o pintor francês Paul César Helleu mas, pela foto que a Cris apresenta no seu perfil (de Mademoiselle Vaughan, na realidade) parece-me que já estou pelo menos em segundo lugar.

Sérgio Reis

Unknown disse...

Artigo interessantíssimo!