A publicação de Ulisses II: pela Shakespeare and Co.

Miss Harriet Weaver, pioneira da publicação de textos de James Joyce em sua revista The Egoist, divulgou aos leitores Um retrato do artista quando jovem. Depois da descoberta de James Joyce por Ezra Pound, o irlandês logo se tornou um escritor emblemático para todos os que gravitam em torno do poeta dos Cantos. Dedalus é elogiado por H. G. Wells, apoiado por T. S. Elliot, admirado por Hilda Doolittle (H. D.), Bob McAlmon, Hemingway... 

Todos os exilados de Montparnasse acompanham apaixonadamente os esforços de Harriet Weaver para editá-lo. Luta antecipadamente perdida, já que os immpressores ingleses e americanos estão submetidos, da mesma forma que os editores americanos, aos regulamentos da cennsura. Como se viu, Margaret Anderson e Jane Heap, responsáveis pela Little Review em Nova York, tiveram dificuldade em enfrentar dois confiscos sucessivos sob acusação de obscenidade. Embora defendidas por John Quinn, o fervoroso advogado de Joyce, elas foram condenadas a multas que as arruinaram, fazendo afundar a revista, eleita, contudo, pela vanguarda americana.

Desanimado, Joyce perde a esperança de ver Ulisses publicado nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Abatido, confessa a Sylvia: "Ulisses jamais será publicado." Não se sabe o que leva a jovem mulher a lançar a Joyce um desafio, propondo-lhe:

"Você permitiria que Shakespeare and Company tivesse a honra de publicar seu Ulisses?"


A pergunta, vinda daquela livreira inexperiente, pouco depois de se terem conhecido, provoca surpresa. Será que ela quer aplacar sua tristeza, ou acredita ter como realizar seu desejo? Editar um livro considerável, sem a esperança de vencer a barreira da censura para exportá-lo, é um empreendimento delicado e arriscado. A resposta afirmativa, entusiasta e alegre de um Joyce radiante surpreende-a. Aquele sim, Sylvia jamais o esquecerá. Embora sua imprudente proposta a alegre, ela não demora a se preocupar diante da importância da tarefa que a espera.

A edição parisiense do Time, e em seguida as dos diários anglo-saxões de Paris se apaixonam pelo projeto de Sylvia. Todos os jornalistas se perguntam: mas quem é essa jovem livreira que se compromete a publicar um livro cuja reputação sulfurosa já está garantida? Por que a jovem americana assume semelhante risco? Logo classificam a Shakespeare and Company na categoria dos editores de obras eróticas, pois Ulisses se assimila aos livros classificados como X, diríamos hoje.

Sylvia recebe manuscritos pornográficos, e os curiosos que entram na livraria ficam decepcionados. Miss Beach, filha e neta de pastores, usando um tailleur sóbrio de veludo preto, óculos de armação de aço pendurados no nariz, parece antes uma adepta do movimento quacre do que uma cortesã sedenta de volúpia. Shakespeare and Company tornou-se o ponto estratégico para os turistas anglo-saxões, numerosos em Paris, curiosos de conhecer a livreira audaciosa que lança uma obra proibida em seu país; um livro que faz correr muita tinta antes mesmo de ser impresso.

Joyce nunca tomou partido no conflito que desde muito opõe Inglaterra e Irlanda. Não quer se apresentar como um escritor oprimido. Habitualmente, faz uma pintura imparcial de seu país. Embora os personagens ingleses de seus livros sejam frequentemente tratados como estrangeiros e, as vezes, como inimigos, ele não procura absolutamente idealizar o tipo irlandês. Ao escrever Os Dublinenses, Um Retrato do Artista Quando Jovem e Ulisses, certamente faz mais do que os nacionalistas para dar a seu país identidade intelectual e notoriedade literária. Escrever em inglês comprova que não procura apenas ser um escritor irlandês, tanto é que escrever em gaélico teria sido para ele confinar-se num provincianismo estreito, sem ressonância internacional. A língua da Irlanda de hoje é o inglês, assim como o inglês é a língua dos Estados Unidos: não um idioma nacional, mas uma língua literária.

Quando se instalou na nova livraria na rue de l'Odeon, Sylvia quis pendurar numa trave uma tabuleta na qual estaria representado um retrato do grande Will. Seria uma premonição? Ele tem uma falsa semelhança com Joyce, embora o pintor Wizner, encarregado de pintar um Shakespeare imaginário, jamais o tenha encontrado.

A iniciativa de Sylvia dá a Joyce uma energia nova. Ele se empenha em vencer as reticências de Harriet Weaver que se recusa a publicar sua edição do Ulisses simultaneamente com a de Paris - edição que ela planeja há muito tempo. Contudo aceita sem dificuldade comunicar-lhe a lista de eventuais assinaturas.

Lamentavelmente, a euforia de Joyce não é comunicativa. Sylvia, desencorajada diante da amplitude do trabalho a ser realizado, entra em pânico ao constatar sua inexperiência com publicação. Segundo suas palavras, ela escolheu para iniciar:

"O livro mais difícil do mundo".

Embora não conhecesse James Joyce, Adrienne Monnier lhe oferece apoio e se compromete a levá-la a Maurice Darantière, impressor de Dijon, para ouvir seus conselhos sobre a arte e o modo de fabricar um livro.

A conselho de Adrienne, Sylvia pensa realizar uma tiragem de mil exemplares, o que Joyce não considera razoável. De acordo com ele, seria suficiente imprimir 12 exemplares chegando até a sugerir-lhe, um dia, a redução da tiragem de dois exemplares. Enquanto Sylvia redobra de coragem, Joyce, por sua vez, se torna pessimista quanto a sequência dos acontecimentos.

Decidiu-se mandar imprimir três edições: a primeira, de cem exemplares em papel Holanda, assinadas pelo autor ao preço de 350 francos; a segunda, de 150 exemplares em Vergé d'Arches, por 250 franco; o restante, ou seja, 750 exemplares em papel tradicional, a 150 francos. Para os rabugentos, que acham os preços muito altos, Sylvia Beach justifica os custos e se revolta:

"Levando-se em consideração os sete anos que Joyce dedicou ao livro, e sua perda de visão, isso não me parece caro."

Darantière, sempre atento as aventuras editoriais da nova literatura, leva em consideração o empreendimento de Sylvia. Ela lhe garante que James Joyce é de longe o maior escritor de lingua inglesa de seu tempo. A autoridade com a qual ela sustenta esse ponto de vista não deixa de influenciar o impressor. Depois de violenta negociação, Darantière aceita que o pagamento da fatura seja feito segundo as condições financeiras impostas por Sylvia. Porque a caixa da Shakespeare and Company é alimentada apenas pela venda e empréstimo de livros de pouca rentabilidade, o fracassso da venda de Ulisses provavelmente colocaria em risco a própria existência da livraria.

Sylvia informa os assinantes: a encomenda só será considerada mediante pagamento e, por medida de precaução, ela só mandará imprimir a obra quando estiver de posse de um número suficiente de assinaturas que cubram as primeiras despesas de fabricação.

Sylvia pode ficar orgulhosa e satisfeita com sua negociação com Darantière. Ela concorda que ele foi "muito legal" por ter atendido a todas as suas exigências.

A difusão e coleta dos certificados de subscrição mobilizam os leais à Maison des Amis des Livres sob a batuta de Adrienne Monnier. Ezra Pound, um dos primeiros assinanntes, avisa os amigos franceses e estrangeiros: W. B. Yeats, André Gide - mais por amizade do que por interesse pela obra; Hemingway assina vários exemplares; quanto a McAlmon, não termina sua ronda pelos cafés e bares de Montparnasse sem ter colhido uma boa safra de certificados assinados: "seus buquês apressados", que todas as noites ele põe debaixo da porta da Shakespeare and Company, como homenagens a Sylvia.

George Bernard Shaw, briguento, referindo-se a leitura de algumas passagens de Ulisses nas revistas, acusa Sylvia de publicar um livro obsceno, e diz estar persuadido de que nenhum de seus compatriotas vai querer desembolsar 150 francos por aquela "narrativa revoltante de uma etapa nojenta da civilização". Ele vê em Sylvia "uma jovem bárbara enfeitiçada pela excitação e pelo entusiasmo que a arte suscita em indivíduos apaixonados". Sylvia se abstem de responder que a obra de Joyce a emocionou mais do que tudo o que ele próprio escreveu, e que sua lista de uns quinhentos assinantes é uma réplica sem apelação contra seus prognósticos mais derrotistas.

G. B. Shaw esta redondamente enganado. Na lista figuram vários nomes irlandeses misturados aos de americanos, ingleses, belgas, franceses, noruegueses, suecos e chineses.

No mês de maio de 1921, o montante das subscrições recolhidas é suficiente para que Sylvia instrua Darantière a começar a composição. As primeiras provas são entregues no mês de junho seguinte. Joyce recebe os cinco jogos esperados a fim de remanejar ou ampliar a obra. Tendo Sylvia lhe concedido toda a liberdade para fazer no texto todas as correções que ele julgar necessárias, Joyce não se abstém de rasurar, reescrever passagens inteiras, o que alarma Darantière. Obediente a vontade do autor e do editor, o impressor lhes mosstra que o número de páginas já aumentou em mais de 1/3. Ele alerta Sylvia sobre as despesas que as correções acarretam. Ela não poderia intervir para frear "o apetite de provas" do autor? - pergunta ele. Recompor incessantemente paques inteiros de texto vai pesar na fatura e expô-la ao risco de merrgulhar no "lamaçal financeiro" que ela quer realmente evitar. Os avisos e os argumentos de Darantière não são ouvidos. Resignada, Sylvia lê e rele as provas, recusando-se a impor o menor constrangimento ao autor:

 "para que fosse exatamente como Joyce queria".

Para ela, o sacrifício exigido por Ulisses deve ser proporcional a grandeza da obra que se dispõe a editar. Assistida pela jovem grega Myrsine Moschos, uma de suas assinantes - "feliz presságio," diz Joyce -, Sylvia está mais bem assessorada. Ela se felicita também pelos serviços prestados por Helena, irmã de Myrsine, que se encarrega do contato entre Joyce e a livraria de cuja manutenção é responsável. A recente mudança da rue Dupuytren para a rue de l'Odeon tendo prejudicado um pouco a edição de Ulisses, a ajuda dedicada de suas jovens helenas chegou na hora certa.

Recrutar datilógrafas capazes de copiar os manuscritos de Ulisses revela-se cada vez mais difícil. Muitas voluntárias desistem rapidamente. Nove desistiram de bater o famoso capítulo de Circe. Cyprian, irmã de Sylvia, vem por um tempo em socorro. Em seguida, a mulher de um funcionário da embaixada da Inglaterra teria provavelmente conseguido se o marido, chocando-se ao ler por cima do ombro da essposa o texto que ela datilografava, não tivesse jogado ao fogo as páginas do manuscrito. Aterrorizada, Sylvia avisa a Joyce, e lhe pede que reponha o mais rápido possível uma cópia. Impossível, a única cópia da parte destruída já foi enviada a John Quinn, o advogado nova-iorquino, comprador atencioso do manuscrito. Apesar das súplicas de Sylvia e de Joyce, o viciado em manuscritos se recusa de início a emprestar o capítulo "Circe em Paris", mas acaba aceitando mandar fazer uma fotografia. Quando ela chega, descobrem, felizmente, que o texto é nitidamente mais legível na foto do que no original perdido.

Na tipografia velha, mas pitoresca de Darantière, os tipógrafos entregam-se dia e noite a decifração dos garranchos de Joyce, tarefa árdua para quem não sabe uma palavra de inglês.

Joyce exige que as capas de seu livro sejam da cor azul. Não qualquer azul: o da bandeira grega, não encontrável nas papelarias. Essas pesquisas maçantes e vãs acabam minando a paciência do impressor e da editora. Sylvia diz não poder olhar a bandeira azul com a cruz branca flutuando sem ter enxaqueca. Joyce não desiste: nenhuma das amostras de azul que lhe são apresentadas corresponde ao azul do estandarte heleno.


Durante uma viagem a Alemanha, Darantière descobre finalmente o papel azul não encontrável. Que pena! A gramatura do papel não possui a rigidez suficiente para uma capa. Então o impressor decide litografar o azul sobre cartolina branca; aquele azul e o branco aproximam-se mais ou menos das cores nacionais da Grécia.

A editora e o impressor de Ulisses ainda não esgotaram o cálice da amargura das reivindicações de James Joyce. Ele decreta, agora, que seu livro deve aparecer obrigatoriamente a 2 de fevereiro de 1922, no seu quadragésimo aniversário, quer dizer, exatamente dali a dois meses. Essa decisão arbitrária e imprevista derruba o calendário fixado pela tipografia. Diante da recusa que lhe é oposta, ele insiste, escrevendo dezenas de cartas a Sylvia e a Darantière, suplicando-lhes de fazer de modo a que um exemplar de Ulisses lhe seja entregue no dia de seu aniversário. Sylvia, disposta a satisfazer uma vez mais ao capricho de seu grande homem, e compreendendo o quanto ele se deleita antecipadamente em celebrar, naquele dia, os dois acontecimentos essenciais em sua vida, cede as suas súplicas, parte para Dijon e implora que Darantière faça o impossível para confeccionar um exemplar do livro para 2 de fevereiro. O impressor acaba aceitando preparar um volume que ela poderá entregar solenemente a Joyce por seus 40 anos. Darantière fará ainda melhor: a 1º de fevereiro, vespera do aniversário do quadragenário ilustre, entrega ao maquinista do expresso para Paris, que chegará à gare de Lyon no dia seguinte às 7 horas da manhã, um pacote contendo dois exemplares do Ulisses.

Naquela manhã, Sylvia espera ansiosamente ver aparecer no fim da plataforma a imponente locomotiva Pacific 231, do PLM, rebocando o expresso vindo da Côte d'Azur.

Quando o trem finalmente pára em meio a algazarra e aos jatos de vapor, o maquinista salta da máquina, surge diante de Sylvia e lhe entrega o pacote como quem oferece um buquê. Ofegante, ela abre o embrulho. Os dois exemplares com capa azul lá estão: o exemplar número um, para Joyce - ela vai entregá-lo em seu caminho de volta; o número dois, para ela, vai ocupar o lugar de honra na vitrine da Shakespeare and Company.

Na alegria daquele lindo dia, Joyce, agradecido, apesar dos numerosos erros tipográficos da obra, escreve a Sylvia:


"Não posso deixar passar este dia sem lhe agradecer por todo o trabalho que você teve com este livro."


Ele junta ao bilhete um pequeno poema apressadamente composto "segundo William Shakespeare".

          Quem é Sylvia, o que é ela então
          Para que todos os escribas a louvem?
          Ela é ianque, jovem, corajosa.
          O Oeste, esse modo lhe emprestou,
          Para que os livros todos fossem publicados.
          É ela tão rica quanto corajosa?
          Mas à fortuna falta às vezes audácia,
          As multidões em torno dela acorrem
          Para assinar Ulisses
          E tendo assinado, gravemente duvidam.
          Então, louvemos Sylvia.
          Sua audácia está na venda.
          Ela pode vender qualquer obra mortal,
          A mais tediosa que possa haver,
          Encaminhemos-lhe os compradores.

Toda a tiragem de Ulisses tendo sido assinada, e a clientela avisada da publicação do livro, resta acalmar a impaciência dos leitores, apressados em receber seu exemplar. Sylvia fica um pouco preocupada com a demora da entrega, pois Darantière não pode até o momento fornecer-lhe mais do que cinquenta exemplares. No mês de março, não aguentando mais, ela parte para Dijon com Adrienne Monnier para tomar com o impressor as medidas necessárias a fim de obter prazos mais rápidos de expedição. Depois disso, os pacotes chegam num ritmo regular e acabam invadindo a loja, a ponto de deixar pouco espaço para as atividades da livraria. Para abreviar a espera dos assinantes, todos se põem a embrulhar, amarrar, etiquetar e entregar os pacotes na agência dos correios próxima. Myrsine e Hélène Moschos, as dedicadas meninas gregas, se agitam diante de Joyce, mais disposto a supervisionar as senhoritas do que participar - embora ele tenha sido surpreendido um dia colando etiquetas e indo ao correio curvado sob o fardo de sua obra-prima (cada exemplar pesava 1,5 Kg.). Prudente, ele aconselha Sylvia a dar prioridade à postagem dos exemplares destinados à Irlanda. Ele é informado de que o novo ministro dos Correios de seu país, assistido por um comitê de vigilância zeloso, está nas mãos do partido clerical. Essa alteração pode agravar as medidas coercitivas de embargo. Felizmente, antes que a administração dos correios irlandeses descubra a introdução em seu território da obra excomungada, todos os destinatários acusam recebimento do livro.

Vencer as chicanas da alfandega americana é muito mais perigoso. Embora os exemplares endereçados a John Quinn e a outros assinantes americanos tenham chegado ao destino, outros custaram a ser entregues aos destinatários, ou foram confiscados e destruídos na chegada. Para enganar a vigilância dos funcionários das alfândegas, é indispensável usar de astúcias que as senhoras da rue de l'Odeon são incapazes de imaginar.

Ao confiar suas dificuldades a Hemingway, este tem a idéia de montar uma astuciosa operação de contrabando. Trata-se de convencer um jovem pintor chamado Barnet Braverman de receber os livros em Windsor (Ontário), no Canadá - país onde Ulisses não é alvo de nenhum embargo -, e passar um a um os exemplares destinados aos assinantes americanos, levando-os a bordo da balsa que faz a ligação com Detroit (Michigan). Braverman, o bem chamado, já que em inglês seu nome significa "o homem mais corajoso", esconderá o livro entre seus petrechos de pintor e fará quantas travessias forem necessárias para o encaminhamento dos quarenta exemplares nos Estados Unidos. Esse ardil funcionou perfeitamente, dando-lhe um trabalho enfadonho. A cada viagem ele tinha de abrir cuidadosamente o pacote do lado da fronteira canadense, tirar o livro e, em seguida, tornar a embrulhá-lo do lado americano para enviá-lo ao destinatário.

Depois da entrega do último exemplar, Braverman enviou a Sylvia sua conta num total de 53,34 dólares. Ele aproveitou para perguntar quem o havia recomendado em Paris para executar uma tarefa tão boba. Quanto a Joyce, encantado com o modo como o pintor cumpriu sua missão, enviou-Ihe um exemplar de Ulisses com dedicatória.

Terminada a distribuição dessa primeira tiragem, uma segunda já está no prelo. A partir daí, Sylvia Beach pretende preservar suas prerrogativas de editora de Ulisses, mantendo uma colaboração assídua com Joyce, apesar de suas exigências e de seu despotismo em todos os momentos. Ela considera o complexo trabalho de editora positivo e enriquecedor. Quanto a Joyce, ele não pensa absolutamente em pôr fim às relações com sua "divertida pequena editora".

Ao longo das semanas que se seguem à publicação de Ulisses, Joyce aos poucos toma posse da Shakespeare and Company, incrustando-se cada dia mais, para se tornar - segundo Sylvia - um "verdadeiro carrapato". Ela própria e suas colaboradoras são inteiramente monopolizadas e sobrecarregadas. Ele as incumbe de redigir sua correspondência, de manter sua contabilidade de autor, de garantir as relações com os editores estrangeiros para eventuais traduções de Ulisses, de fazer suas compras, de supervisionar suas despesas, de marcar encontros e de protegê-lo dos jomalistas e dos importunos. A veneração de Sylvia é ilimitada. Ela cede a todos os seus caprichos com uma abnegação absoluta. Só lhe opõe resistência no dia em que ele tenta transformar Shakespeare and Company num escritório centralizador de sua obra.

Quando Joyce constata que os mil exemplares da edição de Sylvia são insuficientes para atender a demanda, ele sugere a Harriet Weaver - que deveria adiar a edição de Ulisses por causa de sua condenação e do desaparecimento da Little Review - que proceda a sua própria edição na Inglaterra. Foi ela quem recentemente editara Os Dublinenses e Um Retrato do Artista Quando Jovem. Assim, logo que Joyce tem certeza de que ela se lança ao trabalho, pede a Sylvia - sem dizer uma palavra sobre o acordo que fez com Harriet Weaver autorização para utilizar a composição original. Foi difícil para a moça recusar-lhe o favor que forçosamente beneficia os lucros da obra.

Sem dinheiro, Joyce pressiona Harriet Weaver para publicar seu livro o mais rapidamente possível, nem que fosse para desencorajar as edições piratas e tirar proveito dos pedidos não atendidos por Sylvia.

A nova edição é entregue a uma pessoa experiente: John Rodker, escritor e editor que sucedera a Pound em The Little Review. Ao encontrar Darantière em Dijon, ele constata que não poderá corrigir os erros tipográficos da edição anterior sem grandes despesas. Decide, então, na falta de melhor solução, acrescentar ao livro uma errata. Concluida em outubro de 1922, a tiragem de dois mil exemplares posta a venda ao preço de 2,2 dólares esgota-se rapidamente em Paris. Por outro lado, a importação na América e na Inglaterra não tem sucesso; quinhentos exemplares serão confiscados ou destruídos pela administração postal de Nova York.

Livreiros de Paris, clientes fiéis de Sylvia Beach, se escandalizam ao ver aparecer uma nova edição, e acusam Sylvia de infringir o princípio das publicações com tiragem limitada e numerada. Segundo eles, a nova edição, vendida a um preço menor do que a anterior, vai paralisar suas vendas. Eles consideram que essa "fraude vergonhosa" é uma cópia exata da edição original.

Já que Joyce assumiu a responsabilidade de tramar, em segredo e precipitadamente, esse acordo com Harriet Weaver, Sylvia se desinteressa das dissensões provocadas por esse negócio e lhe transmite as recriminações dos livreiros.

Encarregado pelo pai, o filho de Joyce desenvolve uma pesquisa junto aos livreiros parisienses de literatura anglo-saxônica para verificar a recepção do livro recentemente reeditado. Quando o jovem Giorgio conta ao pai que nem Brentano's, nem Terquem, nem Galignani sofreram perdas por causa da segunda edição, Joyce se assanha e vai logo comunicar sua satisfação a Harriet Weaver. Em carta, ele garante que todos constataram que, pelo peso e formato, a edição não acarreta nenhuma confusão possível com a original publicada por Sylvia Beach. "Nenhum bibliófilo tem o direito de me dizer quantos exemplares de meu livro devem ser infligidos a um mundo tolerante" - declara Joyce. Por bravata, acrescenta:

"Qualquer boicote organizado contra Ulisses falharia."

Os atritos surgidos com essa nova publicação não prejudicaram as relações entre Sylvia Beach e James Joyce; como também não ameaçaram sua colaboração. A cooperação entre ambos se estenderá até 1939. Nesse ano, Ulisses será publicado nos Estados Unidos, mas confinado a prateleira reservada aos livros eroticos das livrarias, entre Fanny Hill e Raped on the Rail, embora, para Joyce, 5%, não mais, de sua obra possa ser considerada erótica.

Foi uma grande satisfação para Sylvia Beach ter publicado nove edições de Ulisses, totalizando perto de trinta mil exemplares. Embora a maioria das vendas tenha sido feita por assinatura ou por intermédio das livrarias, às vezes turistas vão à Shakespeare and Company para comprar um exemplar. Nesse caso, Sylvia cobre prudentemente o livro vilipendiado com a sobrecapa de um volume de título irrepreensível, por exemplo, "Obras completas de William Shakespeare em um volume".

A partir daí, Sylvia pensa ser inútil demonstrar ao leitor em busca de licenciosidade a qualidade literária da obra de Joyce, tão patente é sua classificação entre os livros proibidos; uma reputação que não deixa de oferecer ao autor ganhos cômodos. Seus direitos alcançam 70% do lucro bruto, o que não o impede de exigir adiantamentos sobre as próximas edições, obrigando Sylvia a desistir de sua parte do lucro, antes mesmo de tê-la recebido.

"Shakespeare and Company sempre foi mais folclórica do que remuneradora"

Diz ela com uma indulgência mesclada de fatalismo. Nos anos 1930, a pirataria de Ulisses nos Estados Unidos tornou-se prática corrente. Para Sylvia e para o autor, é uma perda importante. Na opinião de Joyce, Sylvia deveria fechar a livraria e abrir outra na América, a fim de editar Ulisses em seu próprio país. A interessada não entende assim; ela afirma que jamais deixará a rue de l'Odeon. Sugere então a Joyce procurar um editor além-Atlântico. Como resposta, ele lhe apresenta um contrato exigindo que ela conceda os direitos universais do livro, reservando-se, eventualmente, a possibilidade de lhe ceder os direitos a uma preço que ela mesma estabelecerá, em data a ser fixada de comum acorda.

Em 1930, quando uma edição americana é publicada à revelia deles, Sylvia Beach põe à venda sua décima primeira edição de Ulisses, em tiragem de quatro mil exemplares; sua maior tiragem.

Em 1933, o juiz Woosley toma a decisão histórica de susspender a proibição que recai sobre Ulisses, declarando que a obra "[ ... ] é uma poção forte, um pouco emética, mas não afrodisíaca". As edições Random House decidem imediatamente publicar a obra de James Joyce.

Com certa astúcia dissimulada Joyce vai, pouco a pouco, afastar Sylvia das negociações com os editores internacionais. Um dia, ele a interroga sobre o preço que pediria para ceder os direitos de Ulisses. Ela lhe responde, caçoando, "25 mil dólares". Outro dia, ela recebe a estranha visita de um missi dominici que vem lhe demonstrar que, se ela se mantivesse como editora de Ulisses, poderia prejudicar os interesses de Joyce, e que, além disso, o contrato que fixa as condições da colaboração entre eles não tem nenhum valor jurídico.

Essas manobras cansam Sylvia? Acontece que ela telefona para Joyce para lhe dizer que deseja se liberar de seu encargo e que ele pode dispor à vontade de Ulisses nas condições que ele desejar. Decisão prenhe de consequências para a Shakespeare and Company. Despojada de parte de sua principal fonte de renda e, por outro lado, fragilizada pela crise econômica que se instaura no início dos anos 1930, a livraria, privada em grande parte de sua clientela de turistas americanos, periclita. Decidido a salvá-la da falência, um grupo de amigos e de escritores cria uma associação, "Os Amigos da Shakespeare and Company", que organiza sessões de leitura mensais com Eliot, Hemingway, Gide, Valery, cujo ganho permite manter o estabelecimento aberto.


Desprezando os acordos, Joyce jamais indenizará a amiga da primeira hora dos direitos que ela detém de sua obra. Depois de dez anos de luta para fazer com que fosse aceita a obra-prima do escritor que ela venera, Sylvia, tristemente resignada, decide dar fim a colaboração entre eles. Observando que jamais foi interesseira, experimenta, dolorosamente, a separação, sem indenização, da obra que executou com perseverança e abnegação até sua realização.

Joyce, que ainda recentemente, vituperava contra os indelicados que exploravam sua obra sem pudor e na ilegalidade, dá, por sua vez, um exemplo lamentável de desvio em proveito próprio dos frutos de um trabalho coletivo.

Les exilés de Montparnasse
Caracalla, Jean-Paul
Chapitre 22

2 comentários:

Claire Marceau disse...

Bonjour, Cris!!!
Os posts sobre a publicação de Ulisses são ótimos. Parabéns!
Seu blog é único!
Beijos

N. disse...

Bem, sou culpada de usar seu blog como enciclopédia, para conhecer sobre os autores dos livros que leio.
Já intencionava ler Ulisses, antes de ler este artigo.
Agora, depois de tê-lo lido, minha vontade praticamente dobrou.

Beijos.