A publicação de Ulisses I: travando conhecimentos

"Encontrei James Joyce pela primeira vez de surpresa,
durante o verão de 1920"

Escreve Sylvia Beach. Naquele dia, sua amiga Adrienne Monnier insistiu muito para que ela a acompanhasse. Então, esmagadas por um calor sufocante, foram a Neuilly, onde moram os Spire, no número 34 da rue du Bois-de-Boulogne.

Sylvia fica impressionada com a Figura de André Spire: a barba lhe devora as faces, os longos cabelos lembram um personagem da Bíblia gravado por William Blake.

Quando a conversa entre os diferentes convidados se inicia, Spire sopra ao ouvido de Sylvia:

"O escritor irlandês James Joyce está aqui."

Intimidada com idéia de se encontrar diante dele, Sylvia pensa em fugir. Mas quando Spire lhe diz que foram os Pound que os trouxeram, ela se tranquiliza. Pound é frequentador assíduo da Shakespeare and Company; ela mantém com ele excelentes relações.
Mrs Pound está lá, fala com uma jovem mulher, que apresenta a Sylvia: Mrs Joyce. Ruiva de cabelos ondulados, Mrs Joyce tem um forte sotaque irlandês. Seu modo um tanto afetado é compensado pelo humor. Diz estar contente de conversar com alguém que se exprima em inglês, pois não compreende uma única palavra do que se fala ao seu redor.

"Ah, se fosse italiano!" - exclama ela. -
"Passamos tantos anos na Itália que, desde nossa volta de Trieste, todos nós falamos italiano, mesmo em família."

André Spire chama os convidados a mesa para um jantar frio. No momento em que serve os copos de cada um deles, um dos convivas afasta a garrafa de vinho e, para marcar bem sua temperança, emborca o copo na mesa. Esse personagem de sobriedade ocasional não é outro senão M. Joyce.

Depois do jantar, enquanto Adrienne Monnier enfrenta Julien Benda em defesa de seus amigos Gide, Claudel, Valery e outros frequentadores de sua Maison des Amis des Livres, ofendidos pelo polemista, Sylvia introduz-se na biblioteca onde encontra Joyce apoiado negligentemente nas estantes. Tímida, ela ousa lhe perguntar: "O senhor não é o grande James Joyce?" Aquiescendo, ele lhe estende uma mão frouxa que ela toma na sua, seca e nervosa. Sylvia o descreve tal como o viu naquela noite: "de altura mediana, ele se mantém ligeiramente encurvado; suas mãos são finas; a esquerda usa no dedo médio e no anular anéis engastados com pesadas pedras; por detrás dos óculos, os olhos são bonitos, embora o direito, visivelmente atrofiado, use uma lente mais grossa que o esquerdo. Fronte bombeada, cabelo louro-ruivo jogado para trás. Penso que, quando jovem, ele deve ter sido bonito" - escreve Sylvia. (Contudo Joyce tem apenas 38 anos em 1920!) Sua voz é bem timbrada, ele se exprime com certo preciosismo na escolha das palavras e na maneira como as pronuncia, provavelmente por causa do respeito pela linguagem e dos anos que passou ensinando inglês.

Joyce acaba de chegar a Paris, aconselhado por Ezra Pound. Conheceram-se em 1914 graças ao poema I Hear an Army Charging (Escuto em exército em carga) que seria publicado em Des imagistes, antologia que Pound preparava na época. Foi o início de uma relação amigável, importante para o modernista e para a literatura contemporânea.

Como ele estivesse a espera de moradia, Ludmilla Savitzky, tradutora de A Portrait of the Artist as a Young Man (Um Retrato do Artista Quando Jovem), publicado em francês com o título de Dedalus, lhe empresta seu apartamento no numero 5 da rue de l'Assomption.

"O que a senhora faz na vida?" - pergunta Joyce a Sylvia.

Enquanto ela lhe fala de seu trabalho como livreira, ele aproxima um caderninho do olho bom e anota o endereço da Shakespeare and Company, cujo nome tanto quanto o de Sylvia parece diverti-lo. De repente, porém, um cão late. Joyce empalidece e começa a tremer. Ele pergunta a interlocutora se o animal vai chegar até eles. Vendo o pobre Joyce muito incomodado, Sylvia o tranquiliza. O cão está brincando na rua, e seus latidos de alegria não tem nada de ferozes. Por ter sido mordido no queixo quando criança, conservou um medo doentio de cães. A barbicha que usa, confessa ele, serve apenas para esconder a cicatriz.

Sylvia, agora descontraída, continua a conversar com um Joyce amável e atencioso. Chegada a noite, no momento em que ela se prepara para ir embora, Spire pergunta a jovem mulher se ela não se entediou. Entediar-me? Ora essa! Ela tinha acabado de travar conhecimento com James Joyce.

No dia seguinte, ela vê, por detrás da vitrine de sua pequena livraria da rue Dupuytren - sabemos que ela abrirá a livraria da rue de l'Odeon apenas em 1921 -, Joyce subindo a rua, usando um gasto terno de sarja azul escuro, chapéu de feltro preto jogado para trás, girando a bengala de freixo da Irlanda - presente de um oficial da Marinha irlandesa cujo navio de guerra fazia escala no porto de Trieste. (Seu personagem, Stephen Dedalus, jamais se separa de sua bengala de freixo.) Apesar de sua aparência desleixada, Joyce mantém uma elegância natural. O pintor inglês Frank Budgen o encontrou na casa de um amigo em Zurique em 1918 e 1919. Com o olhar experiente de artista, traçou um retrato bem rigaroso de Joyce:

"A saudação que Joyce nos dirige é de refinada polidez européia, mas, pensei, seus modos são distantes, seu aperto de mão pouco caloroso. De perto, não parece grande, embora tenha uma altura bastante acima da média. A ilusão se deve ao talhe frágil, ao sobretudo abotoado e a calça estreita. Ele ouve, mas não olha para o interlocutor. Sua cabeça tem o oval alongado próprio a raça normanda. A cor dos cabelos e escura o bastante para dar a impressão de serem negros à luz noturna. A barba é muito mais clara, castanho alaranjada, e cortada em ponta: elisabetana. Por detrás de lentes grossas, os olhos são de um azul claro e vivo, mas seu desenho é indefinido e a expressão, mascarada. Noto em seguida que em momento de dúvida ou de apreensão seus olhos se tornam azul-celeste e lançam um olhar furioso. Seu rosto é da cor de tijolo vermelho igualmente distribuída. A fronte alta faz um movimento para a frente imediatamente depois da raiz dos cabelos. O maxilar é firme e quadrado, os lábios finos, apertados, desenham uma linha reta [ ... ]. Algo em sua postura lembra uma grande ave pernalta, atenta, preocupada."

Os retratos de Sylvia Beach e de Frank Budgen coincidem suficientemente para que se imagine o personagem de Joyce chegando, naquele dia, a Shakespeare and Company. Seu olhar é imediatamente atraído pelas fotografias de Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, penduradas nas paredes.

A pequena e desconfortável poltrona na qual ele se instala perto da mesa de Sylvia leva-o as confidências. Ele lhe conta como Pound o convenceu a ir para Paris, o que lhe causou alguns problemas que tem de resolver rapidamente: procurar um teto para sua mulher, Nora, seus filhos, Giorgio e Lucia; encontrar um emprego para alimentá-los e, enfim, gozar de um pouco de calma para concluir Ulisses.

Alojar-se é o mais urgente, pois Ludmilla Savitzki em breve vai retomar o apartamento. Para resolver o problema financeiro, ele espera voltar a ensinar inglês, e absorver os gastos ocasionados pela viagem a Paris. Em Trieste, empregado pela escola Berlitz, ensinava inglês a iniciantes. Tarefa maçante para um poliglota que fala italiano, francês, grego, alemão, espanhol e três línguas escandinavas, bem como ídiche e hebraico.

Apesar dos problemas de visão - sofre de glaucoma - redige à noite, não dita nunca, escreve à mão, pois quer ver o trabalho tomar forma, palavra após palavra. Ele faz questão de terminar Ulisses, no qual trabalha há sete anos, para concluí-lo assim que seu problema de moradia estiver resolvido. John Quinn, o famoso advogado colecionador americano compra-lhe página após página o manuscrito de Ulisses. Pequenas quantias, diz ele, mas sempre bem-vindas.

As corajosas tentativas de The Little Review para publicar excertos de Ulysses nos Estados Unidos sempre se chocaram com a censura. Os sucessivos confiscos, os processos, as condenações impostas aos contraventores pelos tribunais de Nova York não encorajam os eventuais editores a pensar em publicar seu livro quando estiver concluído.

O romancista conta a Sylvia que, recentemente, quase quarenta editores recusaram seu livro Os Dublinenses. Ele recorda:

"Em 1914, depois de uma luta de nove anos pela publicação, meu livro - escrito em 1905 - custou-me processos, viagens e despesas postais por volta de três mil francos; mantive correspondência com sete advogados, 120 jornais e homens de letras, e todos, salvo Ezra Pound, recusaram-se a me ajudar."

Frequentador da livraria de Sylvia Beach, Joyce ali encontra jovens escritores com os quais estabelece relações amigáveis: Robert McAlmon, William Bird, Ernest Hemingway, Archibald MacLeish, Scott Fitzgerald, Thornton Wilder, bem como o compositor George Antheil. Apesar de adulado por eles, Joyce não se coloca jamais como um mandarim. Mantém com os jovens uma atitude de familiaridade. Sem desprezar ninguém, dirige-se aos jovens colegas com a mesma delicadeza que aos garçons ou as crianças. Concede à empregada atenção principesca. Curioso, escuta os mexericos da porteira da rue de l'Odeon com a mesma atenção que as digressões de Ezra Pound sobre a poética de Mallarmé, e não sai do táxi antes que o motorista tenha acabado de lhe contar sua história. Solta frequentes exclamações, mas nunca palavrões; sua expressão preferida - "Già!" - é italiana. Fala com naturalidade, sem grandiloquência, não gosta de superlativos, espanta-se que se diga que o tempo "está muito bonito", quando "bonito" lhe parece suficiente. Cortês, fica chocado de ver os compatriotas entrando e saindo da livraria sem um sinal de polidez, contentando-se com um "Oi, Hem! Oi Bob!", em vez de "bom dia". Da mesma forma, desagrada-lhe ouvir Paul Valery referir-se a Adrienne chamando-a de "Monnier", e a Sylvia pelo nome. Ele também não faz questão de que o tratem com excessivo respeito: o "cara mestre" que alguns escritores lhe dirigem parece-lhe zombeteiro. Satisfaz-se com um simples "Senhor Joyce".

Recatado, cora como um noviço ao ouvir Leon-Paul Fargue contar na casa de Adrienne Monnier histórias um pouco picantes diante de um auditório de senhoras, quando ele mesmo não acha inconveniente por diante dos olhos femininos alguns trechos escabrosos de seu Ulisses.

Quando visita a família Joyce, Sylvia se surpreende ao vê-lo ser repreendido pela esposa como se ele fosse um menino levado, e dar a impressão de gostar. Nora apoquenta tanto o marido quanta os filhos, chama todo o seu povinho de vagabundo, lamenta-se por ter um marido que não para de "escrevinhar" e diz jamais ter lido uma linha do que ele escreve. Ela exclama:

"Se pelo menos eu tivesse me casado com um fazendeiro, ou com um banqueiro, ou um trapeiro!"

Seus esforços para se parecer com um chefe da família responsável e realizado, embora tocantes, não são apreciados nem reconhecidos. Sua distração e inaptidão para observar as convenções da vida revelam sua marginalidade inata. Diante dos fenômenos incontroláveis da natureza - tempestade, mar agitado, precipícios, doenças contagiosas - se mostra sem coragem. Suas superstições, das mais convencionais, são de uma infantilidade desarmante: um guarda-chuva aberto no apartamento, um chapéu pousado na cama, o encontro de duas religiosas são para ele anúncios de malefícios ou de catástrofes. Algumas datas ou alguns números se ligam a acontecimentos felizes ou desastrosos. Curiosamente, os gatos pretos que atravessam seu caminho são portadores de sorte ou de felicidade, mas os cães são desprezados. Contudo Joyce não ignora que Argos, o fiel cão de Ulisses, morre de alegria ao reencontrar o mestre de volta de sua longa odisséia.

Quando por fim retornou
À pátria o sábio Ulisses
Seu velho cão dele se lembrou.


Mas o autor de Ulisses permanecerá para sempre surdo aos cantos de Homero e à Chanson du mal-aimé de Apollinaire. Nem mesmo um grande poeta poderá vencer a repulsa contra a raça canina.

Les exilés de Montparnasse
Caracalla, Jean-Paul
Chapitre 21

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